quinta-feira, 14 de junho de 2007

A Prata da Casa

Pesava-me. Doía-me. E sangrava frequentemente. Para lhe acalmar as tormentas, segurava-o com as mãos. Mas bastava qualquer surpresa, um pouco mais forte, para que o deixasse cair.
Esta fragilidade oprimia-me. Constrangia-me. Não sabia o que lhe havia de fazer. Onde o colocar. Como lhe tocar. Ou deixar que lhe tocassem, mesmo ao de leve. Ou se confiá-lo a alguém merecedor. Se tal existia. Era preciso dar-lhe um rumo. Arrumá-lo.
E um dia a resposta chegou. Fi-lo atravessar uma corrente de prata e prendi-a em volta do pescoço. Agora pende-me sobre o peito e dali não mais sairá. Está seguro, até que eu o perca, como perco às vezes a cabeça, ou até que a corrente se parta. Aqui fica o meu coração de prata.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Sala de Espera

O tecto de estuque branco incomoda-me. Deixa-me nervosa. Querubins por entre motivos florais estendem-se sobre a minha cabeça. As brechas que denunciam a antiguidade, assim como as asas que começam a desvanecer-se, fazem-me recear que uma rosa ou um anjo me caia em cima testa. Não consigo perceber os gestos dos meninos gorduchos porque estão curvados (talvez sob o peso das asas brancas) e não têm mãos. Arrepia-me o ranger das tábuas de madeira envernizada, o verniz a disfarçar o desgaste do soalho, sem o esconder. O chão vibra com o vaivém dos automóveis lá fora. Tudo me parece apontar para uma calamidade. E no entanto, o sol entra à vontade pela janela de portadas de madeira abertas, também elas brancas, e aquece-me as costas. A sala devia ser acolhedora, com as suas cadeiras azuis almofadadas. Mas o tecto sem candeeiro perturba-me. Talvez seja apenas do meu nervosismo. Não devia ter bebido outro café.

quarta-feira, 28 de março de 2007

Uma fonte no deserto.

O chão à minha volta está seco. Se antes era lama, agora o sol endureceu-o. Está gretado do calor e as fissuras formam estranhos padrões. Não vejo nada senão isto, quilómetros em redor. Perco a noção das distâncias. A solidão é absoluta e o silêncio todo-poderoso. Primeiro sento-me e depois deito-me. Estico o corpo contra o chão quente e áspero. Fecho os olhos mas continuo a ver o sol através das pálpebras, vermelho e penetrante. Sinto os seus raios atravessar-me a pele, queimando-me os olhos, as pernas e os braços nus. Deixo-me invadir por sensações que não sei definir e experimento compreendê-las. Seria um réptil se a minha pele não fosse branca e frágil. E estaria bem se não fosse a secura na garganta e um subtil receio de contrair cancro da pele, receio que começa a tomar conta do meu cérebro aos poucos. Já não consigo concentrar-me nas sensações. Distraí-me delas. Por isso decido levantar-me. Primeiro sento-me e inspiro a ligeira aragem que passou por mim, breve e rara. Não consigo dizer a que cheira o deserto. Talvez não cheire a nada. Como me poderei recordar depois? Talvez o calor me faça lembrar. Agarro-me a esta esperança e ergo-me então, muito devagarinho. Começo a caminhar de costas voltadas ao sol, estudando a lentidão dos meus movimentos, planeando a forma de dar cada passo, fascinada pela minha graciosidade, por ser só para mim, já que estou sozinha e ninguém me pode ver. Nem eu me vejo, apenas me imagino, talvez por isso esteja especialmente bonita hoje. Observo os meus pés, que se movem quase em câmara lenta, e os braços, ora caídos ao longo do corpo, imóveis como o ar; ora oscilando, ondulantes como o calor. Quase flutuo, mas realmente está demasiado calor para isso. Quando chego à fonte, inclino-me calmamente para a água e bebo dela sem pressas, saboreando o que não tem sabor nem nome. Como se ninguém me esperasse e eu não tivesse mais nada para fazer.




"Pois eu," disse o Principezinho para si mesmo, "se tivesse cinquenta e três minutos para gastar como quisesse, dirigia-me devagarinho para uma fonte."

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Para a Finlândia, com amor.

De passo firme, como sempre. Sobrancelhas ligeiramente franzidas, da apreensão, do receio, da ansiedade de pela primeira vez partir à aventura sozinho. Que é como quem diz sem os companheiros de aventura do costume. Porque sozinho não estava. Um amigo do lado, um elo de ligação ao que deixava para trás, ainda que apenas por algum tempo, e um companheiro, também, dos bons e maus episódios. Mas como eu ia dizendo. De sobrancelhas franzidas. Aquelas sobrancelhas fantásticas que durante tantos anos o incomodaram; a adolescência pode ser cruel. Mas a verdade é que no novo país elas faziam parte do conjunto tão exótico que agradava sobremodo às raparigas. Sempre se subestimou, o rapaz.

Tão longe que estava agora. Teria algum dia percebido verdadeiramente o seu valor? A importância desmedida que tinha para umas quantas almas perdidas? A forma como quase sempre dizia a coisa certa na altura certa? E como sabia pedir desculpa na altura certa se dizia a coisa errada. Se por vezes usava o orgulho como escudo, quase sempre sabia ceder à humildade. Rapaz de gestos exuberantes e olhar tímido. Homem de palavras sábias e pensamentos puros. Hesitante na expressão das emoções apaixonadas. Cheio de contradições, como uma verdadeira pessoa, e sempre tão certo, como mito a idolatrar.

Os adjectivos abundam, cansativamente. Para quê desenhar em palavras aquilo que apenas se sente? É tão mais difícil que um abraço. Mas se o corpo não está presente, é preciso abraçá-lo com verbos.

Deixaste para trás um vazio tão grande, tão grande, tão grande, tão grande… Não há nada que o possa preencher. Nem cartas de nove páginas que façam chorar, nem fotografias em situações inusitadas que façam rir. Só o teu regresso. Enquanto isso, vamos balbuciando entre cafés e cigarros que perderam a graça sem ti a reclamar do fumo e a alertar contra as doenças do pulmão, “Tenho tantas saudades…”, “Faz tanta falta…”, “Que vai ser de nós sem ele?”, “Ainda só passou um mês e parece um ano… Acho que não aguento mais dois…”, “Vamos ter com ele… Podíamos, sei lá… apanhar um avião…”, “Queria tanto que ele estivesse aqui para ver isto…”, “O João é que ia achar piada…”, “Vamos dizer que temos uma doença terminal e precisamos que ele volte…”

A nossa doença terminal chama-se mesmo saudade. Mas não é bem terminal, vive em constante estado de evolução, e apesar de sabermos que se agrava a cada dia que passa, a cada fim-de-semana em que quase não nos apetece sair porque sem ti não é a mesma coisa, também sabemos que tem cura. Sabemos que quando terminar vai ser porque te temos de volta. E torna-se doce a saudade. Porque significa apenas como és elementar, meu caro Watson.

Contar-te os meus segredos por e-mail não é a mesma coisa. Mas sei que quando voltares vou gostar de descobrir a mudança em ti. O crescimento. As tuas novas compulsões (não me digas que são as mesmas?). Vais ter tanta coisa para nos ensinar. Não espero que tragas respostas para a vida, nem para o amor, por mais que penses neles. Mas quando nos pudermos rir todos juntos outra vez, e voltar a discutir incansavelmente as eternas questões e os eternos problemas que desde que existimos nos assolam as conversas, estes três meses vão ser a melhor coisa que nos aconteceu. Porque está a ser a experiência da tua vida, e se é importante para ti, é importante para nós. São uns chatos, os amigos. Sempre colados às nossas ideias. Parece que não têm vida própria ou o camandro.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Cardiopatia

De novo o frio. Dez anos de introspecção e uma breve aventura pelo calor humano. Calorosidade. Abraços, beijos, risos e conversas íntimas. O toque. Amar o próximo. Entreajuda. Eu dou e recebo. Tu recebes e devolves. Alguns anos de trocas simbólicas de afectos e objectos. Eventualmente anulam-se. Demasiadas desilusões. Evitar ser arrogante esperando dos outros o que é natural para nós, ou parece ser. Suportar as desilusões como erros humanos perfeitamente aceitáveis, ainda que entristecedores - e de novo a arrogância, de ser melhor do que isso. Se não desiludes ninguém não és real, não existes. Não basta pensar. Arrefece-se então. Que a desilusão é fria. Este é o meu espaço seguro. A minha bolha de anticorpos; o sistema imunitário transcendente. A necessidade dessa distância para respirar. Distância dos cheiros e do calor. Nojo dos corpos e dos sorrisos. É tudo podre, infecto. Lavar as mãos já não é suficiente. Ao contacto humano salivas, mas não é da fome, é do vómito. Apetece viver mas estar morto para o mundo. Arrastas-te no meio das multidões e tentas desviar-te da sensação epidémica do toque. Tudo te cansa porque tudo te parece inútil. Toda a gente precisa de ajuda e clama por atenção mas ninguém se consegue ajudar nem sabe estar atento. Estamos todos surdos e olhamos em frente. Se um coração se fere tem de ser protegido para não infectar. Seria desagradável que a gangrena levasse à amputação. Um pouco de desinfectante, uns séculos de repouso, ou uns anos, quem sabe, e a reabilitação é possível. Entretanto já chega. Arrebenta a bolha.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Da espera ao frio.

Porque não tinha nada para fazer enquanto esperava, li um poema que tinha no bolso. Da ideia de fazer o tempo passar, já que morrer nunca morre. Comoveu-me o poema porque falava de solidão, entre outras coisas e entre nada, e eu sentia-me só. O frio também não ajudava. Estava um frio dos danados, já que dizem que no inferno faz calor. Os meus dedos nus, gelados ao frio, mal sentiam as folhas por entre si. E tinha de ler as letras cortadas entre os cabelos que o vento me empurrava para diante dos olhos. À bruto. Ah, bruto! Vento em bruto, e do frio, gélido, que é mais bonito, menos escuro. O gelo é mais claro que o frio. Mais branco, por causa da geada, ou até mesmo da neve. Mas ali até estava sol. Eu só estava à sombra porque escolhi sentar-me no banco de pedra cinzenta clara, a dar para o azul. E o azul ainda era mais frio que o branco, se calhar porque estava à sombra. E à minha frente estava um tapete de relva enorme. Muito comprido. Estava verdinho e bem tratado. Devia ter almoçado melhor que eu, que a sopa só estava morna. E batia o sol na relva. Sem força, devagar. Meigo como uma festa. Apeteceu-me ser um bicho para me deitar ali e espreguiçar-me. Quem sabe se dormir. Talvez sonhar. Mas morrer não me apetecia muito. Se bem que estava a morrer de frio. Mas não fui bicho, porque era pessoa e tive de fazer de conta que era isso mesmo. Fazer de bicho de conta e enrolar-me era melhor, mas não podia ser. Estava um bocado confusa, devia ser do sono, ou das palavras na cabeça que não me deixaram dormir. E levantei-me meio à toa, sem saber bem onde ia, mas só soube que não sabia no fim de me ter levantado e dado uns passos para lado nenhum. Já não me podia sentar no mesmo sítio agora, então. Dei uma volta ao bilhar grande, que é como quem digo à relva verde que tanto me apetecia. Vi que as escadas também estavam ao sol e fui lá. Eram brancas, deviam estar menos frias que o banco. Tinham um bocadinho de verde nos interstícios da pedra, da humidade. Do frio. Claro, eram de pedra, estavam tão frias como o banco. Mas pelo menos agora, então, o sol batia-me nas costas, se bem que eu não me importaria que fosse com mais força, que continuavam as minhas mãos a enrugar-se com o frio. Mas já que ali estava deixei-me ficar. A esperar o que faltava. Já não era muito e eu dali via o caminho. Ainda pude reler o poema, sem me preocupar. E pelo menos não choveu.


terça-feira, 31 de outubro de 2006

Reflectes-me a verdade

Reflectes-me a verdade
porque tenho os olhos cheios dela.
E não se trata de vaidade;
és apenas mais uma janela.

Nos momentos dispersos de solidão
és a minha melhor companhia;
entretenho-me a procurar-te, em vão,
porque não és mais do que eu seria.

Olho para o céu, procuro a rua;
espero que neve, espero pela chuva.
Mas nos espelhos não há lua
há apenas, por mais que chova, a minha face difusa.

sábado, 7 de outubro de 2006

Sob o signo de Platão

O teu sorriso é como uma noite nublada:
a tua língua é a lua, redonda e macia, às vezes pontiaguda;
os teus dentes as estrelas, cintilantes ou amarelos, não sei bem;
e os teus lábios são as nuvens, fofas e absorventes, que encobrem.

Deixa que cubram os meus,
deixa que absorvam o meu beijo.

Beijo-te.

Os teus olhos são cometas
que me atingem no peito brutalmente,
com o impacto e o fogo de mil vulcões.
Não voltes a voltar-te para trás,
que o álcool ferve-me as veias
e o meu coração bombeia
uma ternura violenta e nostálgica
que ameaça derreter o arame farpado
em que me tinha amortalhado
face a essa lava oftalmológica
(se até mesmo à visão da tua nuca...)

Beija-me.

Chamo-te Orfeu,
que insistes em olhar para trás
nessa curiosidade pagã.
Contra os teus olhos incandescentes
que mais posso eu
a não ser desejar ver-te amanhã?

Deixa-me beijar-te outra vez.
E beija-me uma última vez,
que por ora me estás interdito
e não sei se é por seres proibido
que cada vez mais me tens apetecido.

Acho que a culpa é do Platão, esse maldito!

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Recomeço (?)

A PRIMEIRA PALAVRA
é sempre difícil de escolher. O meu mal é preguiça. Falta de vontade. Por maior que seja a inspiração, nunca é suficiente. E são tantas as ideias, tantas as palavras que tenho por escrever, que me perco nelas e não dou forma a nada, a não ser em pensamento. Passo a vida a escrever em pensamento. Por isso achei que estava na altura de tentar pensar por escrito. Não que os meus pensamentos sejam assim tão elevados que mereçam ser lidos, mas pelo menos desta forma têm um propósito, uma finalidade. Um depósito, vá. É isso mesmo: um depósito de ideias. Pode ser que um dia mais tarde venha vasculhar nelas e valha a pena limpar-lhes o pó.

UM PEQUENO GRANDE PASSO
Parece tão fácil. É apenas pegar numa caneta e num papel. O resto já cá está. Ou então surge como que por magia. Geração espontânea. Maravilhas da ciência. E que saudades do cheiro da minha caligrafia. Palavras acabadas de escrever. E, no entanto, estão quietas há tanto tempo (parece mesmo muito) que libertam um leve aroma a bafio. Saiam daqui, ideias velhas! Deixem-me de vez. Chega de colo. Estão para lá de maduras, quase fora do prazo. E recorrentes, as sacanas.
Eu sei que as estou a expulsar, mas no fundo tenho medo de as perder. E se se esgotam? E se não houver outras novas? Se me secam nas veias, o oxigénio não chega às células. Mais vale parar de respirar.

OS MISTÉRIOS DA VIDA
São muitos, é verdade. E não tenho resposta para nenhum. Mas o que me apoquenta agora é este. Porque é que me privo daquilo que gosto? Do que me faz existir; ser real; verdadeira? É que este rosto de papel é o mais parecido comigo que tenho. Como costumo dizer que os óculos-fundo-de-garrafa são o meu verdadeiro eu. Assim como fechei esse eu na caixa, quererei trancar o resto? Não chega já de fugir?
Ganha juízo; muda de vida. Deixa-te de lérias, mulher!

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Olhares

Já o conhecia de vista, há muitos anos. Sempre o achei giro e interessante mas agora foi diferente. Olhei para ele e fez-me lembrar alguém de quem já gostei. Alguém por quem estive apaixonada. E houve qualquer coisa que se mexeu cá dentro. Ele atrai-me e assusta-me ao mesmo tempo. Não consigo evitar fixar o olhar nele. E mete-me medo porque não sei se o que vejo é um fantasma, um prenúncio, uma promessa, ou um aviso. Fico confusa. Ele é um estranho e é inalcançável. E eu não sei se são apenas recordações antigas ou se é mesmo ele que me faz sentir assim. Só sei que aquele olhar, aquela imagem dele a voltar-se para trás, me ficou gravada com uma solidez tal que me persegue, me assombra, não me dá descanso. Quero voltar a vê-lo. Preciso de o voltar a ver.


Reparei nela quando entrou e olhou para mim. A cara não me é estranha, acho que a conhecia de vista. Não pensei mais nisso até que, no outro dia, me voltei para trás e lá estava ela. A olhar. Deixou-me curioso, confesso. Olhei para ela mais algumas vezes e confirmei que ainda me olhava. É estranha, ela. Tem um ar de abandono e um olhar diferente, penetrante. E nem disfarça. Quando eu olhei ela não se desviou. Continuou como se nada fosse. Chegou a ser assustador. Estará apaixonada? Não a conheço mas até parece ser uma miúda interessante. E é girinha e tudo. Mas não sei se a quero voltar a ver. É que é incómodo ter o olhar de alguém fixo em nós. Mas tenho curiosidade. Gostava de saber se não estava a alucinar.

terça-feira, 1 de agosto de 2006

When everything goes according to plan
you just feel so right
like you do have a place in the world.
Your baloon is filled
and you can't even remember
why you used to be such a sad person.
It doesn't even matter if it's raining
and you're wet
'cause tomorrow is so bright
and there'll still be some more good surprises
you could bet.

sexta-feira, 21 de julho de 2006

Uma questão de vida.

A primeira coisa que fiz ao nascer foi chorar. Nasci aos gritos porque queria respirar. E ninguém me avisou para o que vinha. Ninguém me preveniu sobre o mundo em que nasci. E parecia que o mundo todo estava ali, nos braços quentes da minha mãe e no leite que me alimentava. Depois cresci e comecei a perceber mas fingi que não sabia porque era criança e é suposto as crianças serem inocentes e felizes e eu não queria assustar ninguém. Então cresci mais um pouco e decidi que queria mudar o mundo. Fazer dele um sítio melhor. Tinha o coração cheio de sonhos e a cabeça cheia de ilusões. Até que voltei a crescer e percebi que o mundo não é assim tão fácil de mudar. Fiquei um bocadinho mais egoísta e decidi cuidar de mim.
Mas não sei bem o que acontece depois. Será que os sonhos voltam? Estão apenas adiados? Será que os esquecerei para sempre? Será que os cumprirei? Será que mudam ou no fundo são sempre os mesmos?
Não é verdade que a morte seja o maior mistério de todos. Essa é simples e fácil de compreender. A vida é que é difícil de prever.




*




"I sensed my loss
before I even learned to speak
and all along I knew it was wrong
but I played along with my birthday song."

To Forgive, The Smashing Pumpkins

quinta-feira, 22 de junho de 2006

21

Está oficialmente inaugurado o meu vigésimo primeiro Verão!
Que comecem as festividades!

segunda-feira, 19 de junho de 2006

Sou uma cicatriz ambulante.

Será que realmente quando chegar ao fim da minha vida vão ser poucas as pessoas que verdadeiramente fizeram diferença? É o que se costuma dizer. Não consigo deixar de duvidar.
Vejo esta fase da minha vida como uma espécie de fim do começo. E quando olho para trás, as lembranças são mais que muitas e há tantos marcos históricos que levaria páginas e páginas a descrevê-los. E a minha vida nem tem sido assim tão interessante. Mas se me puser a pensar nas pessoas que tiveram um significado especial, nas que mudaram qualquer coisa em mim, que me acrescentaram, que fazem parte do meu eu actual, de uma maneira ou de outra, são muitas. Muitas, a sério. Os dedos das mãos não chegam para as contar, nem de perto, nem de longe. A verdade é que sendo tão nova tenho uma lista longa de pessoas, de histórias, de cicatrizes. No fundo, são estas que me formam, que me dão forma, que me transformaram. Uns eram amigos, outros nem por isso, outros foram paixões, outros ainda foram exemplos. Dos amigos e das paixões, há muitos que sobreviveram no meu coração, outros não sei bem em que canto de mim os guardo, talvez apenas no das recordações.
A questão reside provavelmente na idade. Enquanto somos jovens, damos muita importância a tudo. Talvez com o tempo passe. Também dizem que o tempo cura tudo. Mas o tempo não cura a saudade. O tempo agrava-a. E eu já tenho muitas saudades. Se fosse escrever um livro sobre cada uma das saudades que sinto, tinha material para uma colecção inteira, para uma vida inteira. Material constantemente renovado. Porque há sempre saudades novas que se vêm acrescentar às antigas, e as antigas nunca morrem.
A saudade é o que vem preencher o vazio deixado por alguma coisa ou por alguém. E é este constante sentimento de perda que me oprime. É a saudade que me aperta o coração. É por cima da saudade que me custa a respirar. É na saudade que perco o olhar quando ele está distante. Tenho tantas saudades... Tenho saudades de um amor que estrangulei à nascença. Tenho saudades de outro amor, que não me deixava comer, nem dormir, nem nada, porque só tinha tempo para amar enquanto amei. E também tenho saudades do primeiro, tão tímido e tão criança que todo ele era silêncio. Tenho saudades de uma amiga que fiz quando tinha doze anos e hoje não sei que será feito dela. - "Bye, angel." - Nunca soube dizer adeus. Há coisas tão fortes que nunca morrem. Há histórias que o tempo não apaga. No mundo da saudade, o tempo não existe. Não importa se foi esta tarde ou há dez anos. O que resta é a saudade.
E se, como dizem, antes de morrer me passar diante dos olhos o filme da minha vida, e nele estiverem incluídas todas as pessoas importantes para mim, vai ser uma morte lenta, mas nada dolorosa. Ou então, se para minha surpresa, o filme for mesmo rápido, vou perceber que vivi enganada. E só aí é que vou dar o braço a torcer. Depois de morta.





*




ISTO

Não queiras, não perguntes, não esperes.
Isto que passa como vida e tu
medes em dias, horas e minutos,
ou como tempo passa e vais medindo
em rugas e lembranças e em sombrias
e plácidas visões de coisa alguma,
às vezes sorridentes, mas sombrias;
sim:
isto, a que dás nomes, que separas
do resto em que surgiu, de que surgiu;
isto, que já não queres, não interrogas,
de que já nada esperas, mas que queres,
por que perguntas sempre, e por que esperas;
isto, que não és tu, nem vai contigo,
nem fica quando vais; em que não pensas,
porque ao medir apenas medes e
nada mais fazes que medir - só isto,
apenas isto, isto unicamente:
não queiras, não perguntes, não esperes,
que o pouco ou muito é tudo o que te resta.

Jorge de Sena

segunda-feira, 5 de junho de 2006

"Just keep swimming..." ou "A Piscina."

Ela sentia-se como se vivesse eternamente presa numa piscina. Uma piscina de sonhos e divagações, desejos e ambições, medos e preconceitos, dúvidas e incertezas. Se às vezes conseguia nadar alegremente no meio daquilo tudo, outras tinha de fazer um esforço enorme para erguer a cabeça e respirar. Era por isso que às vezes se deixava apenas boiar. E a piscina não tinha escadas por onde subir. E era tão grande que ela se perdia e não conseguia encontrar a zona segura, onde tivesse pé. Para subir teria de fazer força com os braços e içar-se a ela mesma, suportando todo o peso do seu corpo. Mas o rebordo era tão alto... Às vezes queria subir, para se poder secar de toda aquela confusão. Às vezes tinha tanto frio dentro de água que ficava com as pontas dos dedos engelhadas, os lábios ganhavam um tom arroxeado e os ossos doiam-lhe. Quando mergulhava muito fundo, ardiam-lhe os olhos por causa do cloro e tinha de se apressar para vir à tona chorar. E enquanto o tempo passava, a água da piscina ia aumentando de volume com as lágrimas. Aos poucos, foi-se tornando uma piscina de água salgada. Até que ela chegou a um ponto em que se sentiu extenuada e pensou em parar de nadar; pensou em deixar que aquela água, que já lhe gelara o coração, lhe invadisse também os pulmões. Assim poderia finalmente descansar, no fundo negro da piscina, que ela nunca conseguira alcançar e tinha tanta curiosidade em conhecer. Mas foi nesse momento que sentiu uma mão a puxá-la pelo pé. Tornou-se leve como uma pluma e flutuou no ar. Enquanto era içada, escorreu toda a àgua que tinha no corpo e nos cabelos. E então, sentiu de novo os pés no chão quente e firme do mundo real. E a realidade foi mais encantadora que algum sonho podia algum dia ter sido.

quinta-feira, 1 de junho de 2006

Para rir ou para chorar, é p'ró menino e p'rá menina, cada cor seu paladar.

- Porque vais?

- Porque quero. Porque tenho vontade...

- Vontade de partir?

- Vontade de fugir.

- E de que foges tu?

- De nada. Fujo do nada.

- No fundo gostavas de ficar.

- Não quero ficar. Mas gostava de ter uma razão para não querer partir.

- É triste, a tua história.

- Qual história? Não há história nenhuma! Não tenho nada para contar.

- Não sei dizer se me fazes rir ou se me dás vontade de chorar...

terça-feira, 16 de maio de 2006

Sombra de luz.

Eu estava do lado de cá e tu estavas do lado de lá. Era uma barreira de metal o que nos separava. Como se dividisse duas realidades paralelas. Eu podia ouvir a tua voz no meio do meu escuro e tu tinhas tanta luz à tua volta que duvidei que me pudesses ver. Cruzei o meu olhar com o teu e tu cruzaste o teu olhar com o vazio que estava na minha direcção, à minha volta e dentro de mim. Acenei-te com a mão, na esperança de que te apercebesses da minha presença, mas deixei de te ver. A luz apagou-se e foste embora. Agora tenho a tua voz a ressoar-me na cabeça, como música nos ouvidos. E o teu perfil é como um decalque no meu olhar. Vejo-te nos vidros das janelas, nas paredes vazias e nos rostos dos outros. Vejo-te nas folhas de papel, como se fosses uma sombra de luz de muitas cores. Hei-de procurar-te um dia destes. Para que possas deixar de ser esta forma indefinida que tenho tatuada na íris. Para que possas passar para o lado de cá dessa barreira metálica. Quero dar-te uma nova cor. Para isso, hei-de procurar-te um dia.

Estrela Cadente

A estrela caiu e partiu-se. Os cacos amarelos no chão são como pedaços de mim. Dizem que o tempo cura tudo, basta ter paciência. Basta ter esperança. Mas a estrela vai ficar partida para sempre, por mais cola que eu use. A ferida sara mas fica a cicatriz. A paciência esgota-se porque estamos cansados de ser desesperados. E os cacos pequeninos são impossíveis de apanhar. Mais tarde ou mais cedo vou ter de os varrer. E a estrela vai ficar incompleta para sempre. Vão faltar sempre pedacinhos, por mais minúsculos que sejam. Podemos curar, mas nada volta a ser o que era. Nunca mais vamos ser iguais ao que fomos antes de quebrar. A estrela partiu-se e eu fiquei sem saber se foi porque fechei a porta com força demais, com raiva demais, ou se foi porque tremeu de medo e desgosto ao respirar a tua cegueira do ódio que latejava no ar, e se desiquilibrou. Não importa de quem foi a culpa. Já não há nada a fazer.
A estrela caiu e partiu-se.


quinta-feira, 11 de maio de 2006

Quem me dera.

Naquela angústia, naquele pânico, naquela ânsia de viver. Quem me dera ser como tu. Quem me dera saber morrer.

terça-feira, 9 de maio de 2006

Equinócio

Ela era uma forasteira. Chegou à cidade num dia de sol, vinda ninguém sabe de onde nem porquê. Trazia apenas uma mochila às costas, com os seus escassos pertences. Vestia umas calças de ganga e uma blusa de verão, bastante puídas, e calçava umas botas castanhas de montanhismo, cobertas de pó. Os seus cabelos longos e escuros, voavam com o vento, soltos e em desalinho. Era bonita. O seu ar de aventureira gerou desconfiança mas o mistério que trazia consigo despertou a curiosidade geral.
A única pessoa com quem foi vista a falar foi com a dona da casa do fim da rua. Era uma casa grande com um lindo jardim, rodeada de plátanos. A dona da casa era uma senhora elegante, de voz suave, com os seus sessenta ou setenta anos. Usava os cabelos brancos apanhados num bonito rolo no alto da cabeça e tinha uns olhos sábios, azuis e bondosos. Quem sabe se elas já se conheciam? Podiam até ser familiares distantes. Mas também podiam ser apenas duas desconhecidas até ao momento em que foram vistas juntas.
- É com o meu noivo que deves falar. - foi a resposta que a senhora deu à rapariga. Não se sabe qual seria a questão. Não se sabe o que ela pretendia naquela tarde de sol em que chegou à cidade com o mundo reflectido no castanho dos olhos.
A rapariga foi ao encontro do noivo da dona da casa do fim da rua. Ele era um homem de ciência, nos seus trinta e alguns anos. Usava uns óculos de lentes grossas que lhe escondiam os olhos verdes. Foi através deles que a viu. Linda e perturbante. A calma dela e o seu sorriso constrangedor provocaram-lhe um estranho efeito. Como se ficasse com febre de repente. Talvez fosse do sol forte, talvez fosse da mudança de estação. Pediu-lhe que ali aguardasse alguns momentos, enquanto ia falar com a sua noiva. Para confirmar alguma coisa, talvez. Doeu-lhe a surpresa com sabor de desilusão que leu nos olhos dela. E deixou-a só. Se se ia casar era por amor. Que dúvida restava, então?
A jovem ficou sozinha na estranha divisão. Era um laboratório e ao mesmo tempo era escritório, sala, quarto, biblioteca. As paredes estavam forradas de estantes que para além de centenas de livros continham objectos e instrumentos desconhecidos, que ela se entreteve a observar enquanto pensava na estranha personagem que acabara de sair. Ele tinha cabelos ruivos, compridos e escorridos até ao nível do queixo. E usava uma barba curta que ela tivera vontade de afagar. A bata branca que lhe chegava aos joelhos estava repleta de estranhas nódoas científicas e riscos de caneta.
Foi então que a sua atenção se desviou para a varanda. Era enorme e não tinha gradeamento. Era apenas um pedaço de chão ao ar livre. E encontrava-se lá um telescópio apontado ao céu que estava naquele momento repleto da mistura de tons quentes do poente. No momento em que ela se aproximou para ver melhor aquele espectáculo arrebatador que a natureza lhe oferecia, levantou-se um vendaval tremendo. O vento uivava, gritava, relinchava assustadoramente. Uma rajada empurrou brutalmente a rapariga para fora da varanda e ela ficou pendurada apenas pelos braços, à altura de dois andares.
Foi nesse instante que ele entrou, logo tomado pelo pânico. Caía um dilúvio. A tempestade destruíra o interior do laboratório (tinha até arrancado pela raíz os plátanos da casa do fim da rua) e as estantes caídas bloqueavam-lhe a passagem. Tentou desesperadamente empurrar os obstáculos que o separavam da rapariga e o impediam de a salvar. Ela riu do absurdo da situação e no momento em que ele conseguiu passar para correr até ela, veio nova rajada de vento que a elevou. Como se voasse, ela pedalou no vazio e foi impulsionada para os braços dele.
- Vês? Nem tudo é ciência. Isto agora foi magia.
Ele ajudou-a a despir as roupas encharcadas e afastou-lhe o cabelo dos olhos. Indicou-lhe o quarto de banho, onde podia tomar um duche quente. Mas ela não se moveu e continuou a fixá-lo. Lentamente, começou a desapertar-lhe os botões da bata suja e beijou o cientista incrédulo.
Fizeram amor no meio do caos que os rodeava, e foi como se o mundo fizesse sentido outra vez. Durante os momentos em que estiveram unidos naquela dança carnal em que a chuva que entrava pela janela aberta lhes fustigava os corpos enleados, o cientista fez a maior descoberta da sua vida. Descobriu o amor. Era diferente do carinho, da amizade, da admiração e dos outros sentimentos bonitos que nutria pela sua noiva. Ele desejava esta rapariga como nunca pensara que se podia desejar alguma coisa. Era luxúria, era paixão. Ele queria protegê-la de todos os males e cuidar dela. E sentia-se vulnerável perante o seu olhar. Era amor, enfim.
E quando ambos atingiram o auge das suas paixões, escutaram um estrondo pavoroso e inconfundível. Também vinha de cima mas não era um trovão. O cheiro da pólvora e do sangue não lhes deixou lugar para dúvidas. Ambos sentiram o mesmo projéctil penetrar-lhes as carnes, quase em simultâneo. Primeiro ele, depois ela. Tinham sido assassinados pela traição. E sem desfazer o abraço das suas pernas em volta da cintura dele, ela disse:
- Se sobrevivessemos, ficavamos com uma cicatriz para nos recordar a nossa primeira noite de amor...

Qualquer dia, sim.

Era bom que fosse sempre verdade quando respondo que sim se me perguntam se está tudo bem. Talvez devesse passar a responder "Não. Mas vai ficar. Vai ficar tudo bem."

sexta-feira, 14 de abril de 2006

Jean-Arthur, mon amour.

Sou uma fada verde desde sempre. O absinto estava no meu destino, eu é que não sabia. E o nosso amor é verde; é verde-absinto. Dancemos de garrafas vazias na mão, até cairmos zonzos e cansados. Pena não sabermos dançar. Pena dançarmos tão mal. Mas não importa porque contigo não há nada que não seja correcto e bonito. Nem o absinto. Contigo, as estrelas estão sempre alinhadas. Alinhavadas na nossa sede. Dancemos então, até cairmos. Dancemos, Jean-Arthur, até cairmos na areia escaldante do deserto, mon amour. Caídos de amor, deixemos os nossos corpos derreter com o calor. Sempre quis saber a que sabem os lábios de um poeta. Tu és o poeta rebelde. E os teus lábios estão quentes, Jean-Arthur. Esperava que estivessem frios como os dos homens mortos, mon amour. Mas os teus ainda murmuram palavras. E tens palavras de uma morbidez tal que ninguém te diria imortal.

Estamos deitados na areia; já bebemos, já dançámos, já nos beijámos. Parte a garrafa, mas cuidado com os vidros, não te cortes. Estás descalço. Chora agora, escondido no meio do meu abraço, porque para mim a tua poesia não é uma mera alínea. Estou contigo na Abissínia. O amor é um deserto e é a poesia que nos mata a sede. Ou pensaste que era o absinto? Não te afogues, não te esqueças. Jean-Arthur, és para sempre, mon amour.




*





"Nos desertos do amor andou Rimbaud,
Ninguém sabe se chorou.

E a poesia? Mera alínea?"


Lamento de Rimbaud, Sérgio Godinho