segunda-feira, 10 de março de 2008

História de ir dormir.

Agarra-te à cadeira com as duas mãos, com força. Articulações lívidas, lábios reduzidos a um traço escuro. Só as pontas dos dedos dos pés tocam o chão que aos teus olhos se movimenta numa dança espiralada. O fumo dos cigarros faz-te arder os olhos que, lacrimejantes, procuram um espaço limpo entre o nevoeiro cerrado. Sim, é a cadeira a tua tábua de salvação. Agarra-te bem para não caíres a esse mar de beatas pisadas e sujidade negra e húmida. O murmúrio do vento nas ondas transformou-se num medonho troar de navios a embater em rochas. Aceitas a inevitabilidade do naufrágio e é com tristeza que ouves os gritos dos marinheiros ébrios que te rodeiam. Ao longe, ao longe, por entre as ondas e o nevoeiro, quase debaixo de água, ouves as gargalhadas estridentes e as palavras rudes do convés num calão arrastado por línguas entarameladas pelo rum. Piratas! Piratas! Sois uns falsos! Esse rum não é puro. A coca-cola transforma-vos em putas de dentes podres e hálito fétido. Onde estão agora as vossas espadas? Não vejo facas nos dentes, nem coragem nem inteligência em vez dela. Os saltos altos vermelhos batem no chão e ecoam como tocos de madeira. Amputaram-vos o brilho. Mas não existe talento de pau. Que pena, que pena! Tanta beleza estragada. Que cheiro a vinho azedo. Ainda ninguém esfregou o convés esta noite. Procuras no horizonte, apesar de não conseguires subir à gávea com o balanço violento das ondas, por uma aberta no céu negro de nuvens e trovoada. E de repente, lá está ela. Longos cabelos loiros, queimados pelo sol, sacudidos pelo vento (apesar de não haver brisa e o ar estar abafado) e a brilhar com os reflexos da luz (apesar de metade das lâmpadas no tecto estarem fundidas) e olhos grandes como faróis a iluminar a tua arriscada trajectória pelo meio da tempestade. Uma sereia de barba aos caracóis. Ouves o seu canto mavioso e preparas-te para o seguir. Largas uma mão da cadeira e ergues lentamente o copo até aos lábios já tingidos de roxo pelo vinho. Bebes de um trago o resto do líquido, como pirata intrépido que hoje és. Ergues-te da cadeira mais rápido do que devias, para ires até ao balcão pedir outro copo e teres um pretexto para meter conversa com a sereia lá do fundo. E é então que te lembras que as sereias cantam para os marinheiros atraindo-os para o fundo do mar. Elas gostam da companhia dos cadáveres que enfeitam os seus jardins subaquáticos. Apercebes-te do teu erro tarde demais e atiras o rosto para o lado, vomitando os sapatos vermelhos do marujo mais próximo. Putas das sereias. Só queres o teu beliche. Arrastas-te dali para fora, para onde o ar é um pouco mais puro. Já passou o enjoo mas sentes a cabeça pesada. Levantas os olhos do chão com esforço e é com enorme surpresa que olhas em teu redor. Por todo o lado, estranhas criaturas passeiam no meio do escuro. Corpos com mais membros que o normal, plumagens de muitas cores e jubas estranhas. Grasnidos, roncos, latidos, zurros e toda uma selva de gritos soltados pelos animais mais exóticos e assustadores que alguma vez sonhaste ou imaginaste. Estás agora numa floresta encantada. Coragem. Hás-de conseguir encontrar o caminho para casa pelo meio das árvores e bestas coloridas. Caminhas com cuidado sem olhar muito para lado nenhum, não vá surgir alguma fada traiçoeira.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Mar verde como relva verde como mar

Alguns versos soltos para aliviar o tédio. Como num sonho. Queria falar sem parar. Sem ninguém a ouvir. Sem ninguém a olhar. E chorar enquanto falo, deixar as lágrimas correr, os olhos como torneiras estragadas, dois rios que não correm para lado nenhum porque não tenho mar. Percorrer margens verdes que nunca acabam e nunca ter de chegar. Não quero chegar mas também não quero ficar. Deixa-me andar por favor. Só quero andar sem ter de escolher o caminho. Sem ruas, sem passeios, sem semáforos, sem nada que me obrigue a parar. A sério que não estou à procura do mar. Sei onde ele está e vou na direcção contrária. Deixa-me afogar. Posso fazê-lo em terra. Até posso boiar. Ou será que assim se chama flutuar? Não. Eu sei que sentada no chão estou a boiar. Lá porque tu não vês... Não estou nada a chorar. Era mentira. Eu não choro. Nunca chorei. E também não minto apesar de não conhecer a verdade. Sei lá o que isto é. Chama-lhe coisas se quiseres. As tuas mãos não tocam no mesmo que eu nem ouvimos a mesma música nem vimos o mesmo filme nem gostamos das mesmas ruas nem sorrimos das mesmas coisas. Mas se tocamos coisas e podemos ouvir e podemos ver e sabemos gostar e sabemos sorrir, então é porque somos iguais, à nossa maneira. Mas lá porque estou a escrever não quer dizer que esteja a pensar em ti. Quem és tu? Quem és tu? Também não sabes de mim nem onde estou. Não vou deixar que me voltes a encontrar. Se vais sair fecha a porta quando saíres porque é para isso que ela aí está. E não digas adeus porque também já não disseste olá. Desilude-me mais. Eu ensino-te.