terça-feira, 16 de maio de 2006

Sombra de luz.

Eu estava do lado de cá e tu estavas do lado de lá. Era uma barreira de metal o que nos separava. Como se dividisse duas realidades paralelas. Eu podia ouvir a tua voz no meio do meu escuro e tu tinhas tanta luz à tua volta que duvidei que me pudesses ver. Cruzei o meu olhar com o teu e tu cruzaste o teu olhar com o vazio que estava na minha direcção, à minha volta e dentro de mim. Acenei-te com a mão, na esperança de que te apercebesses da minha presença, mas deixei de te ver. A luz apagou-se e foste embora. Agora tenho a tua voz a ressoar-me na cabeça, como música nos ouvidos. E o teu perfil é como um decalque no meu olhar. Vejo-te nos vidros das janelas, nas paredes vazias e nos rostos dos outros. Vejo-te nas folhas de papel, como se fosses uma sombra de luz de muitas cores. Hei-de procurar-te um dia destes. Para que possas deixar de ser esta forma indefinida que tenho tatuada na íris. Para que possas passar para o lado de cá dessa barreira metálica. Quero dar-te uma nova cor. Para isso, hei-de procurar-te um dia.

Estrela Cadente

A estrela caiu e partiu-se. Os cacos amarelos no chão são como pedaços de mim. Dizem que o tempo cura tudo, basta ter paciência. Basta ter esperança. Mas a estrela vai ficar partida para sempre, por mais cola que eu use. A ferida sara mas fica a cicatriz. A paciência esgota-se porque estamos cansados de ser desesperados. E os cacos pequeninos são impossíveis de apanhar. Mais tarde ou mais cedo vou ter de os varrer. E a estrela vai ficar incompleta para sempre. Vão faltar sempre pedacinhos, por mais minúsculos que sejam. Podemos curar, mas nada volta a ser o que era. Nunca mais vamos ser iguais ao que fomos antes de quebrar. A estrela partiu-se e eu fiquei sem saber se foi porque fechei a porta com força demais, com raiva demais, ou se foi porque tremeu de medo e desgosto ao respirar a tua cegueira do ódio que latejava no ar, e se desiquilibrou. Não importa de quem foi a culpa. Já não há nada a fazer.
A estrela caiu e partiu-se.


quinta-feira, 11 de maio de 2006

Quem me dera.

Naquela angústia, naquele pânico, naquela ânsia de viver. Quem me dera ser como tu. Quem me dera saber morrer.

terça-feira, 9 de maio de 2006

Equinócio

Ela era uma forasteira. Chegou à cidade num dia de sol, vinda ninguém sabe de onde nem porquê. Trazia apenas uma mochila às costas, com os seus escassos pertences. Vestia umas calças de ganga e uma blusa de verão, bastante puídas, e calçava umas botas castanhas de montanhismo, cobertas de pó. Os seus cabelos longos e escuros, voavam com o vento, soltos e em desalinho. Era bonita. O seu ar de aventureira gerou desconfiança mas o mistério que trazia consigo despertou a curiosidade geral.
A única pessoa com quem foi vista a falar foi com a dona da casa do fim da rua. Era uma casa grande com um lindo jardim, rodeada de plátanos. A dona da casa era uma senhora elegante, de voz suave, com os seus sessenta ou setenta anos. Usava os cabelos brancos apanhados num bonito rolo no alto da cabeça e tinha uns olhos sábios, azuis e bondosos. Quem sabe se elas já se conheciam? Podiam até ser familiares distantes. Mas também podiam ser apenas duas desconhecidas até ao momento em que foram vistas juntas.
- É com o meu noivo que deves falar. - foi a resposta que a senhora deu à rapariga. Não se sabe qual seria a questão. Não se sabe o que ela pretendia naquela tarde de sol em que chegou à cidade com o mundo reflectido no castanho dos olhos.
A rapariga foi ao encontro do noivo da dona da casa do fim da rua. Ele era um homem de ciência, nos seus trinta e alguns anos. Usava uns óculos de lentes grossas que lhe escondiam os olhos verdes. Foi através deles que a viu. Linda e perturbante. A calma dela e o seu sorriso constrangedor provocaram-lhe um estranho efeito. Como se ficasse com febre de repente. Talvez fosse do sol forte, talvez fosse da mudança de estação. Pediu-lhe que ali aguardasse alguns momentos, enquanto ia falar com a sua noiva. Para confirmar alguma coisa, talvez. Doeu-lhe a surpresa com sabor de desilusão que leu nos olhos dela. E deixou-a só. Se se ia casar era por amor. Que dúvida restava, então?
A jovem ficou sozinha na estranha divisão. Era um laboratório e ao mesmo tempo era escritório, sala, quarto, biblioteca. As paredes estavam forradas de estantes que para além de centenas de livros continham objectos e instrumentos desconhecidos, que ela se entreteve a observar enquanto pensava na estranha personagem que acabara de sair. Ele tinha cabelos ruivos, compridos e escorridos até ao nível do queixo. E usava uma barba curta que ela tivera vontade de afagar. A bata branca que lhe chegava aos joelhos estava repleta de estranhas nódoas científicas e riscos de caneta.
Foi então que a sua atenção se desviou para a varanda. Era enorme e não tinha gradeamento. Era apenas um pedaço de chão ao ar livre. E encontrava-se lá um telescópio apontado ao céu que estava naquele momento repleto da mistura de tons quentes do poente. No momento em que ela se aproximou para ver melhor aquele espectáculo arrebatador que a natureza lhe oferecia, levantou-se um vendaval tremendo. O vento uivava, gritava, relinchava assustadoramente. Uma rajada empurrou brutalmente a rapariga para fora da varanda e ela ficou pendurada apenas pelos braços, à altura de dois andares.
Foi nesse instante que ele entrou, logo tomado pelo pânico. Caía um dilúvio. A tempestade destruíra o interior do laboratório (tinha até arrancado pela raíz os plátanos da casa do fim da rua) e as estantes caídas bloqueavam-lhe a passagem. Tentou desesperadamente empurrar os obstáculos que o separavam da rapariga e o impediam de a salvar. Ela riu do absurdo da situação e no momento em que ele conseguiu passar para correr até ela, veio nova rajada de vento que a elevou. Como se voasse, ela pedalou no vazio e foi impulsionada para os braços dele.
- Vês? Nem tudo é ciência. Isto agora foi magia.
Ele ajudou-a a despir as roupas encharcadas e afastou-lhe o cabelo dos olhos. Indicou-lhe o quarto de banho, onde podia tomar um duche quente. Mas ela não se moveu e continuou a fixá-lo. Lentamente, começou a desapertar-lhe os botões da bata suja e beijou o cientista incrédulo.
Fizeram amor no meio do caos que os rodeava, e foi como se o mundo fizesse sentido outra vez. Durante os momentos em que estiveram unidos naquela dança carnal em que a chuva que entrava pela janela aberta lhes fustigava os corpos enleados, o cientista fez a maior descoberta da sua vida. Descobriu o amor. Era diferente do carinho, da amizade, da admiração e dos outros sentimentos bonitos que nutria pela sua noiva. Ele desejava esta rapariga como nunca pensara que se podia desejar alguma coisa. Era luxúria, era paixão. Ele queria protegê-la de todos os males e cuidar dela. E sentia-se vulnerável perante o seu olhar. Era amor, enfim.
E quando ambos atingiram o auge das suas paixões, escutaram um estrondo pavoroso e inconfundível. Também vinha de cima mas não era um trovão. O cheiro da pólvora e do sangue não lhes deixou lugar para dúvidas. Ambos sentiram o mesmo projéctil penetrar-lhes as carnes, quase em simultâneo. Primeiro ele, depois ela. Tinham sido assassinados pela traição. E sem desfazer o abraço das suas pernas em volta da cintura dele, ela disse:
- Se sobrevivessemos, ficavamos com uma cicatriz para nos recordar a nossa primeira noite de amor...

Qualquer dia, sim.

Era bom que fosse sempre verdade quando respondo que sim se me perguntam se está tudo bem. Talvez devesse passar a responder "Não. Mas vai ficar. Vai ficar tudo bem."