sábado, 20 de novembro de 2010

Bom dia, e um sorriso.

Bom dia, e um sorriso. Bom dia, sorriso. Mais um. Passo rápido, às vezes abrando para sorrir melhor, outras não é necessário, sorriso veloz. Bom dia e um sorriso ao sair, bom dia e um sorriso ao entrar. E ao sair outra vez. E ao entrar, se lá está alguém. Às vezes olá em vez de bom dia. Não importa. O que conta é o sorriso. É nele que está o segredo. É nele que está a urgência. Sorrir a alguém, não importa quem, sorrir a quem não conheço. Como se os outros precisassem mais do meu sorriso do que eu mas eu ganhasse uma recompensa qualquer. E há qualquer coisa que o meu sorriso transporta até à outra pessoa, não importa quem, e há qualquer coisa que volta para mim no sorriso dessa pessoa. Não podemos guardar os sorrisos dos outros, é preciso devolvê-los. Mas receio esquecer-me de algum. Terei esquecido algum sorriso? Terei roubado o sorriso a alguém sem o saber e agora não sei de quem é para o poder devolver? Terei roubado o sorriso a alguém por maldade e depois esquecido que o guardei porque não gosto de pensar que sou má? Alguém terá ficado com um sorriso meu e se esqueceu de o devolver, ou não teve tempo, ou não viu, ou não percebeu que era a sua vez, ou não sabia como, ou teve medo, ou quis ficar com ele por qualquer razão, porque sim, porque não? E começo a pensar que me faltam bocados, e que esses bocados andam perdidos nos sorrisos, na rua, nos olhos das pessoas, em segredo. E tento desvendar essas coisas, à cautela, e procuro, com um sorriso, como quem não quer a coisa, mas quero, quero sorrir, como se disso dependesse a minha vida, como se no dia em que eu não sorrir a ninguém pudesse ser o dia em que vou morrer. E quando chego fecho a porta e sei que não estou a sorrir, vou à procura de um espelho e sorrio para mim e devolvo o sorriso a mim própria ao mesmo tempo e há outra vez qualquer coisa que passa para trás e para a frente ao mesmo tempo e sou apenas eu, sou eu que passo para trás e para a frente, às voltas comigo mesma, à procura de qualquer coisa que não sei onde perdi ou sequer se cheguei a encontrar, se cheguei a possuir, porque não sei o que é, nunca vi, nunca percebi, mas faz-me falta não sei porquê. Não sei explicar o porquê desta necessidade mas faço a vontade a mim própria e continuo a sorrir, todos os dias a sorrir, como se disso dependesse a minha vida, com a sobrevivência no sorriso, a vida. Mas quando penso assim nos meus sorrisos, quando a necessidade não é de sorrir mas de explicar o porquê da necessidade de sorrir, o porquê da vontade de sorrir, o porquê de sorrir tanto, não consigo evitar, fico um pouco triste. Não consigo evitar, porque vejo estranheza em tudo.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Poema de não conseguir parar

não consigo parar
é como se a qualquer momento
as palavras fossem rebentar
boca fora
e eu não as pudesse travar
vejo-me tentar
cobrir a boca com as duas mãos
olhos esbugalhados
pânico de o dizer
pânico de me ouvir
pânico de que me ouças
ou de que não entendas
de que me saiam apenas gemidos abafados
entrecortados
ou gritos ininteligíveis
esganiçados
se a luz do dia mostrar o que eu quero esconder
(não, não
por favor, não)
está-me nos olhos nebulosos
prestes a cair
a todo o momento
está-me nas mãos nervosas
prestes a saltar
a todo o momento
e eu não consigo
não consigo parar
fico num coma simulado
para não mostrar nada
para não denunciar nada
porque qualquer movimento é perigoso
qualquer palavra é potencialmente desastrosa
preciso fazer-me de morta
para não ser comida viva
pelas palavras
elas tentam engolir-me
submergem-me
afogam-me
e não são as palavras
é o que está por detrás delas
em silêncio
no escuro
mas quer sair cá para fora
o silêncio quer sair
o escuro quer sair
cabeça fora
palavras fora
boca fora
olhos fora
mãos fora
corpo fora
tudo fora
morro aqui

Poema de um breve sorriso

sorri
enquanto podes
brevemente deixarás de ter coragem
brevemente entrará o negro
brevemente poderás ver
a verdade por detrás do sorriso
a inocência enganosa
a doçura perversa
as garras cor-de-rosa
as presas afiadas
os espinhos à flor da pele
o negrume dos olhos
por entre o cândido verde
está no centro
o núcleo incendiário
sedento de devastação
está por dentro
a teia de arame farpado
os nós sinistros
que não vêm nos livros
ou em qualquer ilustração
brevemente os cabelos ao vento
estarão carregados de electricidade
brevemente as delicadas mãos
estarão crispadas nos braços de uma cadeira
brevemente esse sorriso
vai esgotar-se
vai esgotar-me
vai esgotar-se-me
até quando ficarás sem ver?
até quando poderás não sentir?
até quando acreditarás não ser?
até quando poderás sorrir?
brevemente
brevemente, coração.

Gelo

gelo
à superfície
gelo
cola e queima
ousaste tocá-lo
e não te podes libertar
ou rasgas a tua pele
a tua pele pela tua vida
a pele pelo coração
gelo
arde e corta
queima e rasga
prende e mata
chora pela tua vida
chora pela tua pele
salva a tua pele
e chora
para te libertares
o calor das lágrimas
é a única coisa
a salvar o teu coração
do gelo

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

As coisas simples.

Quando eu era criança, tinha várias formas de me entreter. Como todas as outras crianças descobria o fascínio das coisas simples. O meu simples respirar era uma coisa complexa e deslumbrante. Podia inspirar depressa ou devagar, experimentando o excesso ou a falta de oxigénio, podia respirar pelo peito, pela barriga e até pela cabeça ou pelos pés. Dormir também não era apenas dormir. Sentia-me grata pela facilidade com que adormecia e por esta ser igual àquela com que acordava. Antes de fechar os olhos, deitada, sentia o sangue percorrer o meu corpo todo, incrivelmente feliz por poder senti-lo, no escuro. De manhã, surpreendia-me com os sonhos extraordinários que tinha sonhado enquanto dormia. E por tudo isto, gostava de dormir. Era algo de grandioso, dormir.
Agora, às vezes, deixo-me afundar na complexidade de algumas coisas. Às vezes, perco-me numa espécie de labirinto de mim mesma. E ouço alguém dizer que gostava de voltar ao tempo em que as coisas eram simples. E eu penso, quando é que as coisas alguma vez foram simples? Se o mais pequeno gesto, a mais insignificante realidade, estiveram sempre carregados de um significado esmagador? Se respirar nunca foi apenas respirar nem dormir foi apenas dormir? Se eu nunca pude fazer nada sem pensar, aterrorizada, nas consequências irremediáveis que iria sofrer? Como se segurar num copo de determinada maneira pudesse mudar a minha vida para sempre. E pode. Claro que pode.
Eu sei que nunca haverá um tempo em que as coisas serão simples. E não é isso que me assusta. A não ser nos raros momentos de fraqueza. Porque tudo se torna tão mais interessante. E torna-se tudo tão valioso e insubstituível. Mas é que, às vezes, essas em que tenho medo, essas em que racionalmente admito a minha fragilidade, às vezes receio não conseguir sobreviver à intensidade de esperar que o metro chegue, ou que o meu coração ceda enquanto mexo o açúcar no fundo de uma chávena.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Poema da página em branco.

Lembras-me uma página em branco.
Ou esta página, quando estava em branco,
lembrou-me de ti.
Não creio que seja a página em si.
A página não é importante,
nem o facto de estar em branco,
nem o que escrevi entretanto.
O que interessa aqui
é que me lembrei de ti.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Poema do equilíbrio no Mundo.

Há quotas para tudo,
neste Mundo.
Talvez até as gargalhadas estejam contadas
e inequivocamente distribuídas.
De uma maneira ou de outra,
as quotas têm de ser preenchidas,
todos os dias.

Curei as tuas feridas.
Mas ao trazer-te paz
precisei de sofrer para apaziguar as quotas do Mundo.
Por me rir contigo
fui obrigada a chorar sozinha.
Por sorrir quando te vejo
o meu olhar sobre o rio é triste.
Porque descobri a cor dos teus olhos,
agora as flores não me cheiram a nada.
Mas troco qualquer perfume
por um olhar teu.

Tenho tanto para dar
que me assusta o que posso perder.
Se eu beber das tuas lágrimas
poderão elas matar-me?
Talvez o que tu tens para me dar
possa equilibrar a quota da coragem
que eu ainda não preenchi.
Ou talvez tudo isto
seja um pequeno preço a pagar
por me perder em ti.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Poema de atormentar o coração.

Sinto o meu coração a dilatar e a encolher.
Sinto-o contrair e sinto-o expandir nas minhas mãos,
como um brinquedo de borracha.
E o meu coração é maleável, é moldável.
Brinco com ele como quem brinca com as palavras
imaginando sentir coisas, ensaiando tentativas,
como se lhe atasse fios invisíveis
para o controlar, para o manipular.

Assusto-me.
Tenho medo de mim e do meu coração mutante.
Sinto o meu corpo todo pulsar,
no centro o coração, como uma bomba-relógio,
como se o meu tempo fosse acabar a qualquer momento
e esse momento estivesse cada vez mais perto,
cada vez mais perto,
cada vez mais perto,
cada vez mais perto,
- e está, eu sei,
aflitivamente, sei -
sem que eu tivesse tempo de sentir tudo o que queria.

Nunca tive tempo,
não me deram tempo,
não me deram o que eu queria,
não me deixaram sentir,
não me fizeram sentir
e eu perdi tempo,
perdi-me,
não me deixei sentir,
não deixei que me sentissem
e não deixo,
nunca,
eu sei.

Parece que esgotei o meu sentir
nuns quantos momentos da minha vida inteira,
e que já não posso voltar a sentir-me assim
porque esses momentos já passaram.
E eu vejo os lugares, vejo as pessoas,
e é como se contasse uma história a mim mesma,
antes de ir dormir.
Uma história de quanto eu amei, de quanto eu sofri,
de quanto eu chorei, de quanto eu vivi,
de quanto eu gritei de todas as vezes que morri.
De amor.

E o meu coração enrola-se a um canto
e quer dormir, mas eu não permito,
não lhe dou sossego, não o deixo em paz.
Obrigo-o a pensar. Analiso-o
e tento fazê-lo fazer-me compreender
e tento fazê-lo compreender-me,
a mim e às minhas razões,
chocalho-o e agito-o no ar,
e grito com ele e faço-o chorar,
digo-lhe a verdade e forço-o a ver.
E escrevo-lhe poemas para ele não se esquecer.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

De me lembrar das coisas.

Estive a pensar em ti, mais uma vez, e a lembrar-me de coisas pequenas, de pormenores soltos. Gostava que pudesses fazer o mesmo. Gostava que tivesses uma memória igual à minha, para te lembrares de tudo o que eu disse e com que intenção. Para te lembrares do que eu tinha vestido quando o disse e quais os gestos que fiz. Acho que se tivesses uma memória como a minha me terias amado mais. Talvez me tivesses conhecido melhor, compreendido melhor. Imagino que te lembres vagamente do meu cheiro e da cor dos meus olhos. Mas queria que te lembrasses do resto. Que as minhas palavras te ressoassem nos ouvidos e no coração. Não eram apenas pistas, não eram simples divagações. Eram ideias claras, mapas, bússolas, barómetros. Desenhei com nitidez tudo o que sentia para tu poderes ver. Mas não te consegues lembrar. Ficou-te uma vaga ideia. E eu lembro-me de todas as revelações, de todos os indícios, de todos os pressentimentos, de tudo o que tentaste dizer e tudo o que eu pude adivinhar em reticências inconsequentes. Talvez por isso eu soubesse amar tanto e tão bem. Talvez por isso eu saiba amar melhor. Sinceramente.
Claro que também me lembro de coisas tristes, mas depois de terem passado e serem apenas memórias, fazem-me sorrir. Mesmo as tristes. E claro que às felizes também sorrio. É por isso que às vezes pareço tola, de tanto me rir sozinha. É que me lembro de tudo e há sempre qualquer coisa a acordar em mim a cada momento. E eu rio, apenas. E é bom, e eu gosto de me lembrar de ti. Mas se me lembrar mais do que um bocadinho, se tiver tempo para me ficar a lembrar de ti uma tarde inteira, o sorriso torna-se amargo, azeda-me na boca. Porque sei que me lembro sozinha. E já era assim antes. Antes do fim. O fim, que nunca é bem um fim, tu sabes. Comigo nunca nada é uma coisa só. Talvez por isso te tenhas perdido, nas bifurcações. Quando me doer a cara de tanto me lembrar de ti, hei-de procurar-te, outra vez. Para te fazer lembrar um bocadinho, mesmo sabendo que a ti te custa. Mas é importante que lembres. Para que as coisas não percam o sentido. Para que saibas porquê. Para que compreendas melhor. Para que compreendas que o teu amor é simples de mais para mim. Para que compreendas que não basta amares o meu cheiro e a cor dos meus olhos, ou uma vaga ideia de mim. Mas mesmo que não compreendas, eu perdoo-te. Já perdoei antes. E vou continuar a lembrar-me de quem tu és debaixo disso tudo, mesmo que já não te lembres de me teres mostrado.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Poema de sentir qualquer coisa.

É nestes instantes,
às vezes tão rápidos que são
quase imperceptíveis,
às vezes tão longos que são
quase intoleráveis.
É nestes instantes,
sem sons e sem histórias,
sem vozes nem distracções.
É nestes instantes
que me assaltam as tuas imagens confusas,
em borbotões.
Nestes instantes,
elas roubam qualquer coisa.
De mim.
Nestes instantes,
elas deixam um vazio qualquer.
Em mim.
Nestes instantes,
fico despojada
e sem armas.
Contra ti.
E então
qualquer coisa cresce,
qualquer coisa se alastra,
qualquer coisa me invade,
ocupando o espaço vazio.
E então
fico perdida,
angustiada,
e tenho vontade de chorar
(e às vezes choro)
e sinto que o ar me foge
e sinto uma dor nem sei bem em que lugar
e quase tenho vontade de sorrir
mas não chego bem a tê-la
porque quando dou por ele
o sorriso já lá está,
invadiu-me,
alastrou-se,
cresceu em mim.
E não é bem um sorriso,
não é bem uma angústia,
nem é bem uma dor.
É nestes instantes
que penso.
Nestes instantes
consigo sentir.
E então parece-me que percebo.
Isto podia ser amor.