domingo, 1 de dezembro de 2013

Puto de fuga.

A estranheza de ver um gajo fugir. Desarvorado como se o fossem apanhar para comer, cuspir os ossos e as gordurinhas todas e arrotar meio para dentro, meio para fora. Como se a criatura não soubesse que mais tarde ou mais cedo vai encontrar tudo de frente e não ter por onde fugir sem ser ainda mais forte que essa vontade a vergonha. Como se ele não soubesse que está vivo como um condenado que tem de cumprir a sua perpétua má acção atrás de má acção, decisão errada atrás de decisão errada, tentativa falhada atrás de tentativa falhada, espalhanço atrás de espalhanço, sem que ele possa fazer nada para o impedir. Tudo o que ele tem de fazer é continuar sabendo que pior do que fazer uma má acção ou fazer uma decisão errada ou fazer uma tentativa falhada ou fazer um espalhanço, seja dele ou de outrem, ou das duas variedades, cada uma por sua vez, é não poder fazer nada disto. Ora ele ficando a enfrentar o deixar-se estar é fazer uma tentativa falhada de assim ficar; ora ele fugindo de se deixar estar é fazer uma tentativa falhada de não pensar muito nisso porque enquanto se pisga vai a consciência a dizer-lhe, que nojo, que nojo, vais a fugir. E lá fica com o nojo próprio a ocupar-lhe a cabeça o resto do dia, pelo menos. Havia de ficar parado, imóvel, feito estátua, até lhe cagarem os pombos em cima, que ia dar no mesmo.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A canção do pirilampo

Esmaguei um pirilampo. O sentimento era vingança. Como se pode atrever a romper a minha escuridão? A violar o meu silêncio? A ocupar o meu espaço vazio?
Esmaguei-o até a luz se apagar debaixo do meu pé. Esmaguei-o até a luz se apagar entre os dedos das minhas duas mãos. Esmaguei-o até a luz se apagar entre os meus dentes, onde ficou preso o seu cadáver até que eu os palitasse com a língua.
Mesmo depois de a luz se apagar, a escuridão continua interrompida. Os finos traços de luz aérea permanecem-me cravados na retina. Não sei já distinguir se tenho os olhos abertos. Considero que possam estar fechados. Considero que possa a sua fosforescência ter abandonado a retina permanecendo-me apenas como memória. A única memória. O silêncio já só existe no exterior dos meus ouvidos zunintes, entupidos de asas. O meu vazio, o meu querido, estimado, cuidadosamente cultivado e tão meritosamente alcançado nada, assim preenchido. O meu nada foi-me futilmente, cruelmente, irrevogavelmente roubado. E para nada.
Resta-me lamentar o meu pirilampo. O luto a esconder a carne assassina. Os fogos acesos em memória da luz efémera que, porém, permanece. As melodias agudas que me levantam o coração com uma espécie de leveza etérea, como se já não existisse mas obviamente existindo, para o guiarem melhor no meu lamento. E as palavras que preenchem isto tudo. Ecoando no espaço outrora vazio.
Avançando entre os fogos, até onde a vista alcança, caminho levando no coração um desejo apenas. Desejo continuar a esmagar o pirilampo até não haver mais tempo para gastar. Com o meu corpo todo, centímetro a centímetro.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

poema trágico e aflito


gosto de me sentar no banco da frente do teu carro
e que esse lugar seja sempre para mim

gosto de olhar para ti em silêncio
eu que nunca me posso calar
e eu que estou sempre tão nervosa
de pensar todos os tempos ao mesmo tempo
o tempo todo
sentir-me calma só de te ouvir ininterrupto
tu que és sempre tão calado
e gosto de saber que nunca te hás-de calar comigo
a não ser que eu te faça calar

gosto que tentes dizer piadas
porque não tens graça nenhuma
e és sempre tão sério, tão sério
excepto agora aqui comigo
és sempre tão crescido, tão adulto
excepto quando tentas brincar comigo
e te esqueces de ser sério e crescido

gosto tanto que te esqueças disso
gosto tanto de estar contigo

e parece-me tudo tão belo e tão trágico aqui sentada
porque tu és tão belo e tão trágico
porque estás tão feliz comigo aqui
e tão aflito, tão aflito
sempre tão inadequado
mesmo agora aqui comigo

gosto que fumes sempre mais um cigarro
para olhares mais tempo para mim

gosto que nunca consigas escolher uma última palavra
e que atires sempre mais meia-dúzia da janela do carro
até que eu acene e me afaste
e eu nunca me esqueço de acenar e afasto-me sempre

gosto tanto de ter saudades tuas no momento em que nos vamos separar
gosto tanto que a tua voz me doa de tanto, tanto gostar

terça-feira, 2 de abril de 2013

poema do fundo do coração

o meu pequeno coração perverso
é, na verdade, do tamanho do universo
nele cabe tudo o que houver para sentir
e cabem todos os que eu parar para ouvir

mas a gravidade de um coração assim
é mais forte que se fosse de pedra ou impermeável
porque nada se escapa de mim
e eu sou incontornável

o meu coração não tem fundo
aqui ninguém permanece
e a queda é para sempre
mas do vácuo permanente
também ninguém desaparece

desgraçadamente

sexta-feira, 1 de março de 2013

poema de acordarmos juntos


de pé, rapaz
esta é a tua oportunidade
o momento é fugaz
e se não me prenderes darei uso à minha liberdade

escolhi dormir até não ter mais forças para estar deitada
mas se me forças a despertar
quero nascer de novo pela madrugada

poema de ser uma traça


eu pensei que era nos teus olhos que ia encontrar a verdade
mas confundi luxúria com amor
eu sempre soube que eras um cobarde
mas nunca acreditei que fosses um traidor

isto não passa
não é uma ferida passageira
ardi como uma traça
que se abraçou à luz de uma fogueira

antes acreditei que se não pudesse confiar em ti não podia confiar em mais ninguém
e agora, como é suposto voltar a entregar o meu coração a alguém?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O ódio


O ódio abarca tudo
engole tudo
consume tudo.
Nada existe que possa sobreviver ao ódio
ele acaba fatalmente com tudo o que houver.
O ódio é a mais poderosa de todas as forças
porque todo o resto que existe precisa de alimento
e o ódio não precisa de mais nada para crescer
porque se alimenta de si mesmo.
O ódio devasta tudo
leva tudo
lambe tudo.
Não existe nada comparável ao ódio.
O ódio quando existe é para ser tudo
e mais nada cresce dele.
O ódio é fértil dele próprio
e estéril do universo inteiro.

Garantiste-me que
te odeias porque não amas.

Mas eu acho que
principalmente
tu não amas porque te odeias.