sábado, 13 de outubro de 2007

Choras entre dentes

Choras entre dentes
respiras devagar
vejo-te chorar
e sei que tremes quando mentes.

Passas a língua nos dentes
cheiras o ar
ouço-te silvar
e não acredito no que pensas que sentes.

Ranges os dentes
choras a dormir
sem te lembrares no dia a seguir
e nem eu deixo que tu tentes.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Pequenos deuses

Pequeno Narciso
que se adora apenas
a si mesmo
esperando o dia
em que poderá adorar,
talvez,
outro alguém.
Os seus filhos, talvez.
Pequenos rebentos de Narciso,
rebentos de mais ninguém,
pequenos deuses
de nariz redondo
e olhos macios.
Então, ele será Zeus
e eles serão
os seus pequenos
Hermes, Afrodite
e Zagreus.
Por ora, espera.
Espera pela Hera,
que não passa ainda de um rebento
também,
espera que lhe cresçam as folhas
verdes e persistentes
e os cabelos castanhos.
Espera
que ela o envolva com os seus braços ondulantes
delgados e flexíveis
que lhe aperte o peito
e lhe corte a respiração
que lhe aperte a garganta
e lhe faça perder a voz
que lhe aperte a cabeça
e o faça perdê-la.
Que o aperte até deixar de se sentir
para além da pulsação
como se fosse uma massa de sangue apenas
flutuando
centímetros acima do chão.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Eu sei.

Eu sabia. Sempre soube. Sabia da fragilidade do coração. Sabia da natureza do amor. Sabia das consequências dos actos. Sabia das mentiras. Sabia a verdade. Sabia que os rios não secam de repente. Sabia que a chuva vinha das nuvens. Sabia que o chão podia tremer. Sabia que o meu castigo seria ser esquecida. Eu sabia, eu sabia. E foi por saber que doeu ainda mais a dor que infligi. Foi por saber que fugi. E agora sei que não deixa de arder. Sei que a cicatriz não existe porque a ferida nunca chegou a fechar. Nunca deixou de arder. Acumulo sal nos cantos da boca e sei que não tenho o direito de lavar o rosto. Sei que não tenho o direito de ainda desejar, mesmo às escondidas.
Sei tanto, tanto, tanto.
Mas dou por mim ainda a fazer as mesmas perguntas, numa repetição exaustiva. Incansavelmente. Porque é que há tanto tempo atrás, da última vez, engoli a poção da invisibilidade para não me veres tremer, para não me veres deitar no chão, para não me veres cair, para não me veres gritar, para não me veres arrastar os pés em silêncio, para não me veres fugir outra vez, para não me veres esconder as lágrimas, para quê? Ainda conheço a tua nuca mas mesmo quando sei que não és tu permito-me duvidar por uns instantes, embriagando-me no prazer culpado que a tua presença fantasma me traz. Porquê? Leio as cartas que nunca chegaste a enviar. Ouço as palavras que nunca cheguei a dizer. Repito-as baixinho ou para dentro, conforme estou sozinha ou não. Para quê? Pergunto-me se ainda tens a mesma maneira de sentir, a mesma maneira de olhar. Ainda somos iguais? Ou já mudámos demasiado? Os rumos podem ser assim tão cruéis com a essência? Porque não me calo por dentro como por fora? Ou porque não falo do que sinto? Porque não te faço lembrar? Ou porque não esqueço também? Eu sei... É o meu castigo. Há-de durar tão para sempre quanto eu.
Estamos mortos há tanto tempo mas nunca parámos de ressuscitar sem que no entanto estejamos alguma vez realmente vivos. Está tudo na minha cabeça, eu sei.
Nunca tive dúvidas no que te diz respeito. Bastou a primeira palavra para saber.