sábado, 10 de novembro de 2012

poema dos tubarões


parece-me desleal ser infeliz
enquanto tanto amor me rodeia
tanto me é oferecido
mas com todo este amor
sinto-me debaixo de água
os tubarões sentem o cheiro a sangue
e todos querem o seu pedaço
enquanto estou vulnerável
enquanto resta alguma coisa do que eu tive para dar

mas eu nunca mais vou fraquejar
nunca mais vou mergulhar tão fundo que fique sem ar
nunca mais vou acreditar em amor nenhum
que não seja o meu
nunca mais vou confiar em coração nenhum
que não seja o meu
apenas eu sou pura, apenas o meu amor é verdadeiro
todos os humanos são hipócritas e voláteis
menos eu
todos os humanos são cobardes e preguiçosos
menos eu

eu sou sobre-humana
os meus poderes são invencíveis
o meu amor é invencível e infindável
e por isso nunca hei-de morrer para sempre
antes, hei-de amar para sempre
sem nunca acreditar em mais nada
senão nisso
que o meu coração é imortal
e que os tubarões nunca vão beber do meu sangue
nem comer da minha carne
porque eu nunca mais hei-de fraquejar
e que eu hei-de ser minha até ao fim
e de mais ninguém senão de férias.

não importa o que se vê.
nem sequer importa o que se lê.
sou magnânima mas implacável.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Poema da imolação


Não sabia que se podia estar em chamas de dor.
Pensei que o fogo estava reservado ao amor.
Pensei que o desgosto queimava como o gelo queima
que era o coração do avesso e lágrimas frias.
Mas este fogo é quente.
Imolo-me e é uma sensação diferente.
Suponho que nunca se morra da mesma maneira.
Desta vez bebi o nosso vinho em celebrações,
em festejos de mais uma morte que passou
(passou por mim, atravessou-me).
Celebro a minha morte
e enquanto choro, rio-me de mim,
rio aos soluços.
E sinto-me impossível.
Sou um ser impossível.
É impossível ser eu.
Existo por fora de mim
e vejo-me chorar enquanto sufoco no meu próprio riso.
Não sei o que dizer a mim própria
mas falo incessantemente.
Digo coisas bonitas e coisas horríveis.
A frio e a quente.
E ainda me falta a coragem para as oficializar escrevendo-as.
E entre tudo isto,
nunca o meu silêncio foi tão eloquente.
E o “tudo isto” há-de passar.
Mas quando se ama sabe-se que há uma condição única para amar:
é que o amor seja para sempre.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

História de caminhar sobre nuvens.


O caminhar sobre as nuvens assusta-me porque qualquer passo em falso é a queda para o infinito. O vapor de água que respiro enche-me os pulmões com um cheiro diferente do que estou habituada. Um cheiro bonito. Cheira a sonhos longínquos, sonhados apenas dentro de sonhos, porque nunca ousei sonhá-los acordada. E agora sinto-lhes o cheiro. Mas o vapor de água também me tolda a vista, já de si tão fraca, já de si tão idosa, que por ver tão mal, vê sempre mais do seria expectável. E eu vejo nos sonhos com as mãos e com o cabelo, principalmente, mas vejo também com o resto do corpo todo, porque os meus olhos não prestam e são um mero artifício estético. Por isso guio-me pelo resto, enquanto caminho a medo sobre as nuvens. No percurso desmapeado, a ausência de horizonte conspira com o excesso da pressão atmosférica para me comprimir o peito. Para comprimir os órgãos que vivem dentro do meu peito, em convivência difícil. Os meus órgãos invejam-se uns aos outros porque todos gostavam de experimentar sentir o que os outros sentem e só eu posso sentir tudo porque é só a mim que tudo isto pertence, soberana, tirana das minhas vísceras rebeliosas. O que todas elas sentem, o que carregam em comum, é o medo de mim e dos meus sonhos.

Precipitei-me. Precipitei-me sobre o mundo e sobre os homens. E varro tudo à minha passagem. Sou o fim e o princípio de tudo, quando quero, se quiser. Da forma como acabei, recomeço. Entre a chuva.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Antílope II


Sinto nos músculos das pernas
um frémito que me lembra a vida
como réplicas eternas
do entrar sempre de fugida.

Sinto nos olhos o frio do vento
e nas mãos a erva húmida
descubro o peito crú ao relento
aguardando o fim da corrida.

Sinto no ventre as presas do meu predador
rasgada como um antílope
não morto mas em estertor
no chão que ainda treme do galope.