segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Silêncio

no silêncio
em mim
não há portas nem janelas
não há entrada nem saída
não há espaço nem vazio
no meu silêncio
está o medo
e o ruído disfarçado
no meu silêncio
estão os gritos que não dei
e os que dei
para dentro
em silêncio
no silêncio
estão os segredos
no silêncio
está a magia
em silêncio
estão as palavras
que não acabam
e procuram desesperadamente por um fim
em silêncio
há tempestades
erupções
cataclismos
pequenos apocalipses
pequenos mundos que nascem e morrem todos os dias
em silêncio
em mim
silenciosamente
correm rios
às vezes secam
desabam montanhas
erguem-se cidades
escoam esgotos
apagam-se beatas em cinzeiros de vidro
silenciosos
no meu silêncio
está tudo o que não ouviste
e tudo o que imaginaste
em silêncio
no meu silêncio
morrem crianças
e outras nascem adultas
e eu sou todas
que é sempre a mesma
em silêncio
no meu silêncio
ninguém chora
porque as forças são brutais
e não se esgotam
mesmo em silêncio
sobrevivem sempre
no silêncio
explodem edifícios
apagam-se fogos
outros deixam-se arder
que o fogo purifica
pelo silêncio
em silêncio
faço sacrifícios
aos deuses e a mim
no meu silêncio
está a morte
e grande parte da vida
em silêncio
no meu silêncio
tenho um grande sorriso
e uma infinidade de bons sentimentos
como o ódio e o rancor
guardados
em silêncio
com a vergonha
sem grande pudor
em silêncio
estão as declarações grandiosas
os discursos
a sabedoria
o código que decifra a poesia
com que despejo
aqui
o meu silêncio
no silêncio
em silêncio

sábado, 15 de novembro de 2008

Titânia

O meu silêncio incomoda-te.
O meu olhar perturba-te.
A minha postura não é correcta.
Adoro o meu corpo mas raramente o exibo
e a minha anatomia intriga-te.
Mas o motivo é simples:
a humanidade em mim
repugna-me
e quero ser melhor do que isso.
Coloca-me num pedestal
e adora-me de longe.
Se te aproximas eu fujo.
Tenho barreiras de titânio em meu redor
e o meu medo assusta-te.
Sou feita de um estranho metal
e é isso que vês nos meus olhos.
Só isso,
metal.
Recua mais
e entra para trás dos olhos.
De qualquer modo,
já me estás embutido na retina.

domingo, 9 de novembro de 2008

Poema da Bicicleta

Sonhei que era pequenina
e estava numa floresta encantada
cheia de cores alegres e doces
e muitas pessoas pequeninas
como eu.
Andava de bicicleta
alegremente, entre elas,
como o meu pai me ensinou há muitos anos
quando me largou e deixou ir sozinha
sem rodinhas de apoio pela primeira vez,
e eu estava mesmo feliz.
Acordei por um instante
e quando voltei a sonhar
estava de volta à floresta
e ia continuar a brincar
mas desta vez
as árvores chegavam-me aos tornozelos
e eu ouvia os risos alegres e doces
por baixo de mim
sem que lhes pudesse chegar.
A bicicleta era demasiado pequena para o meu tamanho
e eu mal me podia equilibrar.
Cresci para fora do meu sonho
e já não podia fazer parte dele,
embora tentasse desesperadamente voltar,
e por isso comecei a chorar.
Chamei pelo meu pai
e disse-lhe que estava triste e tinha medo.
E ele respondeu-me:
"Ainda tens muito que pedalar."
Mas eu desisti antes de começar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

História de-gelo.

Eles desejavam-se mutuamente, mas ambos ignoravam o facto de o seu desejo ser correspondido. Então, ignoraram-se reciprocamente na esperança de se tornar objecto de desejo do outro, em profunda ignorância da simetria táctica. Cada vez mais distantes, deixaram apagar o desejo, sedados na frustração do fracasso sedutivo. Um dia caminhavam na baixa de Lisboa, em direcções contrárias, e ao cruzarem-se reconheceram a presença um do outro, trocando um frio acenar de cabeça. Quando digo frio, quero dizer gélido, sibérico, congelante. Tanto que o chão que pisavam começou verdadeiramente a gelar, a uma velocidade estonteante, dezenas de metros em redor. Aterrorizados, olharam em volta. Entre eles, abria-se uma fissura no gelo, com um ruído ensurdecedor. Os estalidos secos do gelo troavam-lhes nos ouvidos. Olharam um para o outro, ainda cheios de terror, e apercebendo-se da sua culpa começaram a rir. As gargalhadas ganhavam um tom cristalino no ar gelado e ecoavam até longe. À medida que eles iam rindo, o gelo começou a derreter. Eles agarravam-se às barrigas, rindo sem parar, e o gelo derretia. As pedras da calçada, a terra e o alcatrão transformavam-se em água. E Lisboa era Veneza, com canais em lugar de ruas. Sempre a rir, eles nadaram até às portas dos Armazéns do Chiado, onde a água acabava, e treparam a margem de alcatrão seco. Subiram a rua e sentaram-se nas escadas da Basílica dos Mártires, recuperando o fôlego. Ali se espraiaram, deixando as roupas secar ao sol, como náufragos.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Uma história com moral.

Eu tinha ido ao supermercado com o meu pai, fazer umas compras rápidas para o lanche. Tínhamos acabado de entrar quando por qualquer motivo eu olhei para trás e vi uma senhora de rosto verde, ombros tortos e com um ligeiro coxear. Morta de riso, puxei o meu pai para um dos corredores laterais e, com dificuldade, pelo meio das minhas pequenas gargalhadas nervosas e compulsivas, informei-o:
- Pai, acabei de ver um zombie a andar na nossa direcção. A sério!
E fechei os olhos, para dar mais uma gargalhada. Quando os abri vi com enorme espanto e terror que o meu pai já não estava à minha frente mas entendido no chão, de crânio aberto e vazio. A senhora zombie estava a centímetros de mim, e eu ainda disse:
- Os zombies não existem.
Mas mesmo assim ela comeu o meu cérebro.
É isto que acontece aos meninos e meninas que gozam com as pessoas no supermercado, na rua, na escola e noutros lugares.

P.S. – Come a fruta e os legumes até ao fim, porque o papão não existe mas o cancro sim.

domingo, 12 de outubro de 2008

História do abre-cartas.

Era a inauguração de uma galeria de arte, e as minhas amigas tinham-me dito que a lista de convidados estava repleta não exactamente de jet-sets desenxabidos mas de artistas da moda, pelo que merecia ir vestida para inspirar. Escolhi um vestido de veludo azul, digno de uma diva, ou melhor, de uma musa, e enquanto moldava com alguma dificuldade o cabelo em caracóis largos e aplicava a minha arte nas pinturas do rosto, fui bebendo um copo ou outro de um whisky novo oferecido por um velho ex-namorado. Lembrei-me da primeira vez que tinha provado whisky e perguntei-me como teria sido capaz de repetir a experiência. Tinha quinze anos e a coca-cola tinha acabado; também não havia gelo, pelo que me juntaram água no copo para diluir a bebida. Devo ter dado no máximo dois goles, depois do que despejei a bebida na sanita e vomitei o resto. Voltei a sair da casa de banho com um grande sorriso e o copo vazio, mas por momentos tinha acreditado que ia morrer no chão de azulejos brancos. Agora tinha bebido um terço da garrafa e ainda não me sentia alcoolizada o suficiente para aguentar a noite de sorriso nos lábios. Ainda não estavam assim tão dormentes. Apanhei um táxi e encontrei as minhas amigas à porta da galeria. Entrámos juntas e elas reuniram-se num grupinho, rindo e conversando, enquanto metralhavam olhares sedutores em redor. Eu estava de péssimo humor e tinha a boca seca, pelo que me dirigi imediatamente ao bar. Era o que este tipo de eventos tinha de bom. Pedi um whisky, para continuar no ritmo, mas desta vez dos bons. Dos mais ou menos, que era o que havia. Enquanto observava os movimentos do barman, o homem ao meu lado começou a conversar comigo. Da boca dele saiam apenas banalidades entrecortadas de lisonjas. Uma óbvia e pouco imaginativa tentativa de engate. As minhas respostas mordazes e semi-provocativas surtiram o efeito habitual e ele continuou a falar entusiasticamente. Tinha um aspecto bastante atraente e era nítido que estava habituado a ter sucesso com as mulheres. Ponderei deixar-me seduzir. Seria uma companhia agradável para aquela noite. Voltei para junto das minhas amigas que imediatamente me informaram que o homem com quem tinha estado a falar era um jovem empresário do ramo imobiliário que tinha já seduzido duas delas com promessas de amor profundo e verdadeiro, promessas tão curtas quanto o tempo que tinha passado com elas na cama. Alertaram-me para não cometer o mesmo erro e eu assenti. Claro que não me deixaria levar por promessas, visto que ele queria precisamente o mesmo que eu. Nessa noite deixei-me levar para casa dele, sorrindo muito sempre que ele dizia alguma coisa mais romântica. O meu tédio era profundo. Estava a passar uma fase de brutal desencanto e sustentava-me a álcool e anti-depressivos. Sempre fora fã da auto-medicação. Na manhã seguinte vesti-me enquanto ele ainda dormia e apenas por consideração o acordei para dizer adeus. Ele ficou ridiculamente surpreendido e percebi que não lhe agradou o meu desprendimento. Provavelmente sentia que eu lhe estava a roubar o papel, emasculando-o. Dei por mim a sorrir no elevador, enquanto descia. Pelo menos já era qualquer coisa. Durante a semana seguinte recebi vários telefonemas para o telemóvel, para casa e até para o trabalho. Por mais que me aborrecesse a insistência, também me agradava ser desejada e acabei por ceder. Continuámos a dormir juntos ao longo de dois meses mas ele não era assim tão interessante e o sexo não era assim tão espectacular e eu cansei-me depressa. Comuniquei-lhe a minha decisão de o excluir da minha vida, pois nem sequer me interessava para amigo, afinal não me tinha esquecido que ele partira o coração não de uma mas de duas das minhas melhores amigas. A reacção não foi agradável. Aparentemente ele não era desprovido de sentimentos e tinha-me escolhido a mim para alvo das suas afeições. Eu já me tinha apercebido há muito tempo da dificuldade monstruosa que os homens têm em lidar com a rejeição e por isso senti alguma preocupação. Mas foi apenas momentânea; meia garrafa de gin e três anti-depressivos depois já nem me lembrava que ele tinha existido. Porém, ele não se esqueceu de mim. Começou a esperar-me à porta do trabalho durante a hora de almoço para falar comigo. Parava o carro, pouco discretamente, junto à porta de minha casa, aos fins-de-semana, e controlava os meus movimentos. Em pouco tempo não havia nenhum lugar em que ele não estivesse e eu comecei a ter dificuldade em respirar. Experimentei ignorá-lo mas o resultado não foi bonito. Passei então a cumprimentá-lo com frieza, mas deu no mesmo. Aos poucos, fui-me habituando a ter aquela sombra doentia, até porque o resto da minha existência não era exactamente saudável. Até que um dia. Eu tinha ido beber uns copos, mais uns, com as amigas do costume, mas naquele dia estava a beber com demasiada sofreguidão e fiquei indisposta. Depois de vomitar na casa de banho do bar, bebi mais um copo, para lavar o sabor, e decidi voltar para casa mais cedo. Elas ficaram. Ele estava à minha espera à porta do bar, desta vez fora do carro. O hálito dele tresandava; qual de nós o pior. Voltei a lembrar-me do meu primeiro whisky. Ele agarrou-me com força pelos braços e começou a falar, muito perto de mim. O velho discurso. Eu estava mesmo cansada. Ele começava a inspirar-me um nojo profundo, e a sujidade da rua não ajudava. E eu estava mesmo cansada. Não foi difícil soltar-me e fazer-lhe perder o equilíbrio já instável com um pequeno empurrão. Enquanto ele se debatia com o álcool para se conseguir levantar de novo, eu tive tempo suficiente para procurar dentro da mala. Naquela tarde tinha estado a escolher uma prenda de aniversário para a minha mãe. Fiquei indecisa porque também havia um colar de ágatas amarelas que me agradou bastante. Mas acabei por escolher o abre-cartas com um lindo cabo de prata trabalhada e lâmina de aço inoxidável. Tive tempo para o retirar cuidadosamente do estojo. Ele estava quase de pé, apoiado a um carro. Não havia ninguém em redor. Eu avancei para ele e, com toda a força que tinha, levantei-o pelos cabelos e empurrei-o para cima do capot do carro. Encostei-lhe a lâmina romba à cara, por baixo do olho esquerdo, e jurei que o matava se ele não desaparecesse. Fiz força suficiente para lhe abrir um golpe na cana do nariz. Lambi-lhe o sangue da ferida – acho que estava um pouco anémica nessa altura – e limpei a lâmina no colarinho azul da camisa dele. Fui-me embora, excitada, enquanto ele praguejava na minha direcção. Chamou-me puta. Não sei porquê, mas decidi voltar para trás. A rua continuava estupidamente deserta à excepção da nossa presença. Cravei-lhe o abre-cartas em cheio no coração. E fui para casa feliz, como não me lembrava de me sentir desde pequenina, nos dias de festa. Mesmo feliz. Guardei o abre-cartas de recordação. Nunca ninguém soube que fui eu. Nunca fui apanhada. Foi apenas mais um caso de violência nocturna. Banal. As minhas amigas quiseram ir ao funeral e choraram, abraçadas, admitindo que ele podia não ser a melhor pessoa do mundo, mas mesmo assim sempre fora encantador. Eu reconheci, no meio dos rostos pesarosos, o pintor cujos quadros tinham inaugurado a galeria e fui falar com ele. Ele lembrava-se do meu vestido de veludo azul e convidou-me para jantar. Eu aceitei e dormi com ele nessa noite. E acabei por oferecer o colar de ágatas à minha mãe. Ela sempre gostou de amarelo.

sábado, 4 de outubro de 2008

Dois cigarros pensativos.

De pé, junto à janela, fumava um cigarro para fingir que fazia algo mais que pensar. Na verdade acabava por fazê-lo de facto. Mais estupidamente, acabava por pensar no facto de o fazer afinal. Algo mais que pensar. De tal forma que o cigarro e o pensamento se confundiam. E por um instante, pensou noutra coisa. Mas depressa regressou ao fluxo de ideias que a trouxera à janela, àquele cigarro. Um paradoxo de impotência total e controlo absoluto dominava-lhe os sentidos. Tinha consciência da existência física dos nervos, que deixavam de ser uma ideia abstracta para se tornarem dolorosamente palpáveis. Não estava a ser uma noite tranquila. Deixou que o fumo lhe invadisse outra vez a boca, a garganta, os pulmões. E não existia ar. Nem fumo, nem nada. Era vácuo dentro dela, selada. Sentiu a boca secar, a garganta arranhada, os pulmões pesados dentro do peito, cansados. Engoliu um pouco de água, do copo que segurava com a mão esquerda, e depois mais um pouco, até acabar. Sentiu o líquido fresco a bater pesadamente no estômago vazio. Não tinha fome. Agora já não. Imaginou o vazio da metáfora encher-se de fumo, mais uma vez. E o fumo era raiva. Uma raiva morna e suave. Porque só agora compreendia onde estava o seu verdadeiro erro. Uma falha de carácter que já tinha admitido há tanto tempo e só agora, só agora via que nunca tinha sido tão grave como com ele. Estúpida. Sentia-se estúpida. Ao mesmo tempo, sentia a invariável saciedade que lhe trazia a compreensão. Apagou o cigarro e acendeu outro, imediatamente. Ela não precisava de ser superior. Todas as vezes em que suportara a crueldade de uma guerra psicológica cuja arma era o terrorismo emocional, todas as vezes em que condescendera, em que não retaliara - já lá iam os tempos em que gritava e lhe tentava bater, assim como o histerismo silencioso da adolescência interna tardia – em que deixara passar, por acreditar que podia ser superior a tudo e sobreviver, foram de uma cegueira profunda. Que não pôde decifrar nesses tempos a arrogância que sempre apregoara tão humildemente, por ser tão melhor que os outros e conhecer tão bem a sua própria humanidade. Vontade de se esbofetear. Agora via que nunca tinha sido pior do que com ele. Na verdade, comparativamente, a condescendência para com o resto do mundo era absolutamente insignificante. Sim. Desta vez percebia o que tinha de fazer. Não precisava de ser superior. Ele é que tinha obrigação de ser uma pessoa melhor. Tão bom quanto ela, no mínimo. Não lhe admitiria nada que não admitisse a si mesma. Daí em diante ele não seria apenas humano como todos os outros, que cometem erros. Não. Isso não seria suficiente para lhe justificar as más acções. Nunca voltaria a perdoá-lo. Porque o perdão era merecido por quem lhe mostrava arrependimento. Aliás, não só não voltaria a perdoar espontaneamente, como sentia todas as velhas feridas a reabrir. Retirava-lhe todos os perdões antigos. Todas as feias recordações que tinha dele nadaram até à superfície. E limpando uma, mais rebelde, da face, apagou o segundo cigarro e abriu a porta do quarto. Com um sorriso extraordinariamente psicótico nos olhos e na boca, disse-lhe: “Eu sou a Nicole Kidman. Tu és Dogville.” E saiu de casa, sem sequer se preocupar com o facto de ele nunca ter visto o filme.

domingo, 21 de setembro de 2008

Poema do caminho para casa

velozmente
a paisagem
e o chão que corre
muito abaixo dos meus pés

um corredor de árvores
velozes
por cima da minha cabeça
quase lhes posso tocar
mas não posso
e elas passam
velozmente
por mim
que estou parada

o movimento e eu
formamos uma dicotomia singular
com pouco espaço para o cinzento

a velocidade aperta-me
e deixa-me neste lugar acanhado
em que não me posso esticar
e a trepidação
também me oprime
como se eu fosse ruir
a qualquer momento
como um prédio novo
de alicerces instáveis

comecei a ser construída pelo telhado

o que é que treme?
sou eu ou o mundo em que me deixo envolver?
é o chão?
sou eu?

a velocidade concilia-se comigo
o meu coração também corre
velozmente
assustado
debaixo de tanto verde

veloz
tropeça
e eu rio
porque posso
e faz passar

hoje não dormi
mas acordei com vontade de chorar
vou para casa
mas não posso ficar
começo a rir
devagar

condiz comigo
esse riso cruel
condiz comigo
esse olhar parado
fica-me bem
a paisagem acelerada
nos olhos
velozes

sábado, 20 de setembro de 2008

Reencontro

Play

Olharam-se nos olhos e ele disse:
- Andei a perder o meu tempo contigo. És das pessoas mais desinteressantes que já conheci.
Ao que ela respondeu:
- Não viste nada.
E, fechando o punho direito, puxou atrás o braço e assentou-lhe um soco no maxilar esquerdo, deixando-o a escorrer um fio de sangue pelo canto da boca e partindo dois dedos da mão: o médio e o anelar.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e, sem dizer nada, beijaram-se uma e outra vez, tentando em poucos minutos recuperar o tempo perdido.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e, sem dizer nada, ele beijou-a. Mas ela afastou-o bruscamente, dizendo:
- És das pessoas mais desinteressantes que já conheci. Não me faças perder mais tempo.
E voltou-lhe as costas.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e ele disse:
- Eu gosto de ti e sei que também gostas de mim. Já chega de perder tempo. Fica comigo.
E ela respondeu, com dureza:
- Eu não mereço ser amada, eu não sei ser amada. Não percas o teu tempo comigo porque eu vou sempre escolher o escuro. De lá vejo melhor. É por isso que vejo tão bem o amor. Porque estou à sombra. Não vês a cor da minha pele? É pálida.
Sentindo-se dominar pela revolta, ele pergunta:
- Mas podia ser diferente. Como é que podes não escolher o amor?
- Já disse. – respondeu ela, com muita calma – Para o compreender melhor. Estás a ver esta? – e apontou para o chão, para a sua própria sombra – Nem tu a podes iluminar. Ninguém pode.
E voltou-lhe as costas, para sempre.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e ela disse:
- Não podes fingir que este encontro não significa nada. Vamos fazer de conta que nunca chegámos a perder tempo e tentar outra vez. Fica comigo.
E ele respondeu, com dureza:
- Foi muito fácil apaixonar-me por ti. E inacreditavelmente difícil esquecer-te. A que é que achas que dou mais valor?
Abismada, ela pergunta:
- Como é que podes não escolher o amor? Podia ser diferente, desta vez.
- Nunca é diferente com ninguém. É sempre tudo igual. E eu não estou a não escolher o amor. Simplesmente escolho não o ter contigo.
E voltou-lhe as costas, para sempre.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e após um breve silêncio, ela disse:
- Há quanto tempo… Então, ‘bora tomar café?
Ele sorriu e respondeu:
- ‘Bora!
E afastaram-se os dois, rindo, como velhos amigos.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos por uma breve fracção de momento e, apressadamente, desviaram o olhar fingindo não se ter visto, seguindo cada um o seu caminho, em direcções opostas, ambos imaginando que se tinham beijado.
Para sempre.

Stop

The End

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Cena de paixão escaldante improvisada

Apenas duas cadeiras. E eles sentados frente a frente, sem nada entre si a não ser o ar que partilhavam em respirações nervosas.
- Então, o que é que tens feito? – perguntou ele - Não sei nada de ti há meses.
- Hhmm. O de sempre. Nada de especial. Apaixonei-me e voltei a desapaixonar-me nos entretantos mas fora isso, fui eu e a praia. – respondeu ela.
- Não tiveste saudades minhas?
- Sinceramente, não pensei muito em ti. Volta e meia lembrava-me da tua cara mas esquecia-me logo a seguir. Sem ofensa. Aliás, agora que penso nisso, é estranho. Quando me lembro de ti, estás sempre muito sério. Costumo lembrar-me das pessoas quando estão a rir, às gargalhadas mesmo.
- Estás a tentar dizer que não tenho piada? – provocou ele.
- Não, até tens a tua graça. Suponho que as minhas recordações de ti não sejam muito felizes. Não são. – e encolheu os ombros, com uma certa indiferença.
- Nesse caso devíamos fazer alguma coisa para mudar isso. – soerguendo-se, beijou-a impetuosamente. A princípio ela correspondeu com intensidade, desencostando-se da cadeira na direcção dele e agarrando-lhe o pescoço com as duas mãos, depois do que o empurrou bruscamente e se levantou de um salto, ofegante. Com toda a força que tinha, deu-lhe um estalo na face esquerda.
- Podes parar por aí. – disse, com azedume.
- O quê? Vais dizer que não te sentes atraída? Não foi isso que me pareceu. – desafiou ele, com um sorriso sobranceiro, agarrado à cara.
- Se eu beijasse e fodesse todas as pessoas por quem me sinto atraída, para além de bissexual, era uma puta. Ora não sou nem uma coisa nem me considero ou aspiro à outra. Podes parar. – repetiu, já com a respiração mais calma, mas nem por isso com o coração menos acelerado.
- Quem é que falou em foder?
- Não se falou mas pensou-se. Não me chames estúpida. Sei bem que estás a pensar por aqui – agarrou-lhe os testículos – e não por aqui. – largando-os, bateu-lhe com os dedos na testa, furiosamente. – Eu não gosto das coisas pela metade. Quando quero, quero tudo. Por isso não quero. Podes parar. – voltou a repetir.
- Desculpa. – disse ele, largando a cara humildemente, chegando mesmo a corar de nervosismo, sem saber o que fazer a seguir.
Ela olhou para aquele rosto acriançado e leu o embaraço dele. Atirando a cabeça para trás, suspirou, impaciente. Teria de ser ela a tomar as rédeas. Deu-lhe outro estalo, na mesma face. Ele continuou sem reacção, olhando-a fixamente, indeciso. Ela voltou a esbofeteá-lo, desta vez na face direita. Subitamente, decidindo-se, ele ergueu a mão e, sem se conter minimamente, retribuiu o estalo. Ela viu estrelas e, ainda meio zonza mas contente por finalmente o ter arrancado do bloqueio, puxou-o bruscamente pelo cós das calças, beijou-o o mais agressivamente que conseguiu e despiu-lhe a camisola, atirando-a para longe, pelo ar.
Parando, romperam os dois em gargalhadas nervosas enquanto a assistência rompia em aplausos, assobios e comentários jocosos:
- Come on baby, light my fire!
- Eh, porno stars aí!
- Hardcore, heavy-metal!
- Desculpem lá mas isso foi muito à reality-show! Que bimbos, pá!
- Boa. – rematou a encenadora, fazendo-lhes sinal para se sentarem. Eles assim fizeram, satisfeitos, dando lugar ao próximo exercício.
- Já te estavas a esticar, bebé. – disse ele, enquanto voltava a vestir a camisola.
- Estava em personagem, pá. – e desataram os dois a rir outra vez.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Eyeliner grief

Hoje voltei a pintar os olhos de preto
Não sei se por ter voltado ao sítio em que te conheci
Talvez em sinal de luto
Por ter enterrado o meu amor por ti.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Poema de pasmar

Estou aqui sentada
permanentemente espantada de tudo o que vejo ou sinto
e tudo o que não vi nem senti também me espanta.
Este pasmo absoluto de tudo,
como o de um tolo que sai de casa pela primeira vez e de tanto pasmar se baba,
surpreende-me ele mesmo,
a mim, que pensava já saber tudo
ou pelo menos aquilo que importa saber.
Afinal, não sei nada.
Porque sempre que vejo uma coisa velha ela parece-me nova,
sempre que vejo as mesmas pessoas elas parecem-me diferentes,
mais velhas, mudadas.
E fico pasmada.

Espanta-me o meu quarto desarrumado,
quando sempre precisei do caos para me sentir viva.
Espanta-me o meu adiar de tudo,
quando sei que adio na esperança de que o prolongar torne tudo mais real
e menos efémero.
Espanta-me a minha vontade de escrever,
quando nunca quis outra coisa na vida
a não ser aquilo que me dá vontade de escrever.
Espanta-me a maneira como sinto as coisas,
quando já analisei em mim tudo o que há para conhecer.
Espanta-me a persistência de sentimentos gastos,
quando sei que fui eu que fiz por mantê-los acesos.
Espanta-me a forma do meu corpo,
quando me vejo nua ao espelho todos os dias.
Espanta-me o prolongar alegre da minha vida,
quando no fundo sempre desejei morrer mais cedo.
Espanta-me o amor que sinto por pessoas e objectos e lugares demais,
quando já conheço de cor o seu cheiro a podre.
Espanta-me ser igual a todos os outros,
quando cheguei a acreditar quando me disseram que sou especial.

E fico para aqui pasmada,
sentada no meu lugar.
E não faço mais nada senão pasmar.

Sou um desperdício de espaço,
um saco roto por onde cai o que há.
Ou o que havia.
E havia muita coisa:
esperança, vontade, qualidades, talentos, beleza, um grande coração humano.
E tudo isso fica espalhado pelo chão desarrumado do meu quarto,
misturando-se com as meias sujas, os jornais do ano passado,
os sapatos, os talões escritos por mim no avesso,
os livros, as canetas que não escrevem
e o cotão.

Não consigo deitar nada fora
porque me parece tudo novo, diferente e original
de cada vez que olho.
E é tudo velho, tudo velho
e está tudo visto, tudo gasto.
Gostava de ser mais ecológica e reciclar a minha vida
porque sei que este espanto todo
não passa de sentimentalismo barato.

sábado, 13 de setembro de 2008

Acercai-vos e atentai:

Disponível para bajulações,
sensível a insultos
e reclamações;
afoita na resposta
(que será amiga e bem disposta).

Sim, é só para dizer que, ao fim deste tempo todo e a pedido de várias famílias, lá me dei ao trabalho de criar um email para o blog (mas uma rimazita estúpida cai-me sempre bem).

seriousandsober@gmail.com

Dedicado aos comentadores tímidos que têm algo a dizer mas não apreciam a praça pública. Façam o favor de escrever, que tenho saudades vossas.

Saudações coisas.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Vislumbre (de um futuro distante num momento de clarividência)

Nada me inspira maior terror
que a visão da tua descendência.
Que mais poderia causar tamanha dor
senão os teus traços num rosto de inocência;
a multiplicação dos teus genes
misturados com outros que não os meus
tornando acres as lembranças perenes
do sabor dos meus lábios sobre os teus.

Alivia-me saber-te perpetuado
e encho-me de uma ternura brutal
mas o meu olhar torna-se aguado
afogando qualquer instinto maternal,
a que nem eu sou imune,
transformando-o num ódio visceral
nascido do meu ciúme.

Os meus melhores sofrimentos são antecipações
e nelas reside a minha arte:
dos ouvidos correr-me-à sangue em borbotões
por nunca conseguir calar-te.

domingo, 7 de setembro de 2008

Bloodlust

Já me serviram vários corações,
em bandejas até.
De ouro, prata
e mesmo tabuleiros de plástico colorido.
Os que me foram recusados
arranquei à mão cheia,
a quente ou a frio,
conforme o comprimento do ano
ou a altura do mês.
Garras pintadas de vermelho.
Alguns beijei-os apenas
para provar o sabor a sangue,
outros mordisquei,
uma dentada aqui ou então.
Uns poucos mastiguei
com toda a crueldade de que me julgo capaz
(pobre rapaz!).
Cuspi pedaços, babei-me um pouco,
pequenas veias prenderam-se-me nos dentes.
Lábios encarnados
(carnudos, sujos de cardio-carne, ficção científica, bem os observei e cheirei).
Mastigo bem.
Mas não engulo.
A minha mãe ensinou-me
não se brinca com a comida
mas há coisas que não aprendo
faz de conta que não sei.
Sou uma menina má.
Má pessoa, má pessoa.
Mas limpei o sangue debaixo das unhas.

sábado, 6 de setembro de 2008

The Boy of Gold

He was made of gold
made of pure bright gold
and i threw him into a river
a deep long river.
He sinked and stayed
buried in the deep waters
There he stayed
buried in blissful forgetness,
Forever held by forces
still unknown to me.
There he was hold
by good forces
away from me.
In the margin i waited
not knowing i was waiting
or what i was waiting for.
My eyes resting from his brightness
my heart stopping with fear.
A marginal, i'm still waiting
not wanting to wait
held by some forces
which i do not control.
Kept by hurtful forces
staring powerless
at the waters
at the boy of gold
covered by a silver liquid blanket of forgetness
drowned in bliss.
And i, staring senseless
eyes covered by warm water
not wanting him back
yet unable to move
stuck in sweet agony
held by tenderness and greed.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Suspensão

Sou uma estátua de pedra e osso
sentada no centro de um quarto.
Não ouço o leve raspar de unhas na minha porta
nem o crânio que tenta fundir-se com a parede.
Não sinto frio nos pés
nem calor nas orelhas.
(Ninguém fala sobre mim mas todos me podem sentir.)
Não vejo o tapete sujo de sangue
nem os móveis cobertos de pó e de pele morta.
Não sinto a chuva que me molha
nem os estilhaços da janela podem cortar a minha carne de pedra.
Imóvel, não sofro nem um arranhão.
Atam-me com cordas
e erguem-me com um guindaste.
Lançam-me ao mar
para abafar o som da minha presença sufocante
e bato no fundo de areia.
Já não sou pedra.
A minha carne pulsa outra vez,
livre.
Abraço os joelhos
e encosto-lhes a boca.
Sustenho a respiração.
Recordo o líquido amniótico
e, de cabeça para baixo,
deixo-me boiar.
O calor afaga a minha coluna vertebral,
dentro e fora de água.
Ora fora, ora dentro.
Ainda não estou pronta
e o mundo lá fora pode esperar.
O lápis está afiado
(aperto-o com força na minha mão, o bico de carvão magoa-me o polegar)
mas as ideias ainda não puderam assentar
e os sonhos correm como a água,
escorrendo-me dos cabelos para o mar.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Poema de um abrir e fechar de olhos.

[A minha curiosidade de ti
aumenta
a cada breve troca de palavras.

O tom ruborizado da minha face
adensa-se
a cada subtil troca de olhares.

Se me tocas ao de leve, sem querer,
tremo.
Se me tocas de propósito,
petrifico.


(Fecha os olhos. Abre os olhos.
Fecha-os outra vez. Volta a abri-los.)


A cada nova palavra
que pronuncias
procuro descobrir o teu interesse
mas tu nunca te denuncias...
Como se eu já não soubesse.

A cada nova palavra
que te dirijo
camuflo as minhas paixões
como se os verbos fossem esconderijos.
Sei bem o que me espera:
desilusões.]

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Uma história de nada.

De todas as histórias trágicas, esta foi talvez a mais triste de todas. Antes, houve sofrimento. Sofreu ela. Sofreu ele. Depois sofreu ele. E ela sofreu também. Sofreu-se muito, e a tristeza foi profunda. Mas esta, esta história fez-se de oportunidades perdidas. Esta história não existiu. Não era ela. Não era ele. Nunca foram eles. Eles nunca existiram. As oportunidades multiplicaram-se a pouco e pouco e a pouco e pouco foram sendo desperdiçadas. Eles não estavam lá. Não havia um lugar. Não havia tempo. Não houve nada. Não existiu. Mas sofreu-se. Tragicamente, sofreu-se por nada.

sábado, 26 de julho de 2008

Nunca estamos sós (We’re never alone)

O riso mais feliz foi o que repeti de todas as vezes em que rimos juntos. As lágrimas mais tristes foram as que não precisei de vos esconder. As palavras mais amargas foram as que pude balbuciar porque me ouviam em silêncio. Os gestos mais sinceros foram os que não precisaram de significado para vos dizer alguma coisa. O tempo mais útil foi o que ocupámos sem fazer nada em conjunto. Os dias mais importantes foram os que passei convosco e já não me lembro porque não é preciso para saber que foram bons. As pessoas mais bonitas são as que me fazem sentir falta de mim como sou quando estamos juntos. A solidão mais profunda é aquela que a vossa mera existência arranca de mim.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Respira o meu sol

Respira o meu sol
enquanto não começo a chover.
As ruínas estão tranquilas
e o pó que eu não limpava
assentou.

Houve momentos em que não senti necessidade de mentir
para me acalmar.
A tua respiração suave bastava-me.
Era no cabelo que tinhas o barulho do vento.

Sem nenhuma tempestade,
sem sequer precisar de chover,
parou.
Está silêncio, mas não fiques para ouvir.

Sol em mim.

É depois das noites sem dormir que penso melhor. Talvez porque pense mais em linha recta. O cansaço não permite as contracurvas costumeiras. O sono, ou a falta dele, transforma-se num tipo de energia diferente. Distante. Fico ausente do tempo real embora o espaço fosse familiar, demasiado até. Os óculos escuros protegiam-me os olhos do vento enquanto observava o vai e vem das nuvens, de barriga para cima. Passam-me trezentas imagens pela cabeça numa sucessão descontínua. O tema era sempre o mesmo. Estava feliz. Não, é exagero. Talvez me sentisse contente. Estava bem. Sim, por uma vez seria verdade e não o diria apenas por hábito. Não precisava de um espelho para ver que os olhos me brilhavam e dei por mim com um sorriso aparentemente indelével nos lábios. Não foi de propósito. É que me sentia bem. Meio febril talvez, mas isso seria das horas sem dormir acumuladas. Estava verdadeira. Estava real. Que seria feito daquela raiva toda que me apertava os dentes ainda na semana anterior? Agora fazia-me sorrir também. "Passou." Que grande calma para tanto vento. Quem me visse assim desgrenhada poderia pensar, sem dúvida, em loucura, em alucínio, mas confesso que há muito não me sentia tão sã. E não importava se no dia seguinte fosse a vez de me passar o bem-estar. Um dia bom é combustível para muito mau tempo. Nem a chuva me podia derrotar - porque nesse dia não me esqueci do chapéu e tinha vontade de andar.
E de súbito uma rajada de vento mais forte obrigou-me a fechar os olhos pois nem os óculos eram o suficiente para os proteger. Senti algo a embater no meu peito e a cair-me no colo. Abri os olhos de novo e peguei-lhe. Fiz girar entre os dedos o pequeno objecto quadrado e cinzento e soltei uma gargalhada. Uma tecla de computador: o número um e o ponto de exclamação. Trauteei para dentro: Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida! No bom sentido é claro. Porque os sinais que me batem no peito só significam aquilo que eu quiser. O significado altera-se mas o sol está mais quente.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Sidewalk

i've been walking for so long
i couldn't tell my feet were moving
until i stopped
no need to think
but still i do
i keep following the same path,
the path to you
everytime
i bump into the same people
everyday
i trip over the the same stones
i kick them and keep walking
till i can't breathe
i walk the ways of my mistakes
i know it's the only way
i move out of the dark
and still can't see a thing
you can't see me either
though i don't hide
and i'm right here
walking by your side.

segunda-feira, 10 de março de 2008

História de ir dormir.

Agarra-te à cadeira com as duas mãos, com força. Articulações lívidas, lábios reduzidos a um traço escuro. Só as pontas dos dedos dos pés tocam o chão que aos teus olhos se movimenta numa dança espiralada. O fumo dos cigarros faz-te arder os olhos que, lacrimejantes, procuram um espaço limpo entre o nevoeiro cerrado. Sim, é a cadeira a tua tábua de salvação. Agarra-te bem para não caíres a esse mar de beatas pisadas e sujidade negra e húmida. O murmúrio do vento nas ondas transformou-se num medonho troar de navios a embater em rochas. Aceitas a inevitabilidade do naufrágio e é com tristeza que ouves os gritos dos marinheiros ébrios que te rodeiam. Ao longe, ao longe, por entre as ondas e o nevoeiro, quase debaixo de água, ouves as gargalhadas estridentes e as palavras rudes do convés num calão arrastado por línguas entarameladas pelo rum. Piratas! Piratas! Sois uns falsos! Esse rum não é puro. A coca-cola transforma-vos em putas de dentes podres e hálito fétido. Onde estão agora as vossas espadas? Não vejo facas nos dentes, nem coragem nem inteligência em vez dela. Os saltos altos vermelhos batem no chão e ecoam como tocos de madeira. Amputaram-vos o brilho. Mas não existe talento de pau. Que pena, que pena! Tanta beleza estragada. Que cheiro a vinho azedo. Ainda ninguém esfregou o convés esta noite. Procuras no horizonte, apesar de não conseguires subir à gávea com o balanço violento das ondas, por uma aberta no céu negro de nuvens e trovoada. E de repente, lá está ela. Longos cabelos loiros, queimados pelo sol, sacudidos pelo vento (apesar de não haver brisa e o ar estar abafado) e a brilhar com os reflexos da luz (apesar de metade das lâmpadas no tecto estarem fundidas) e olhos grandes como faróis a iluminar a tua arriscada trajectória pelo meio da tempestade. Uma sereia de barba aos caracóis. Ouves o seu canto mavioso e preparas-te para o seguir. Largas uma mão da cadeira e ergues lentamente o copo até aos lábios já tingidos de roxo pelo vinho. Bebes de um trago o resto do líquido, como pirata intrépido que hoje és. Ergues-te da cadeira mais rápido do que devias, para ires até ao balcão pedir outro copo e teres um pretexto para meter conversa com a sereia lá do fundo. E é então que te lembras que as sereias cantam para os marinheiros atraindo-os para o fundo do mar. Elas gostam da companhia dos cadáveres que enfeitam os seus jardins subaquáticos. Apercebes-te do teu erro tarde demais e atiras o rosto para o lado, vomitando os sapatos vermelhos do marujo mais próximo. Putas das sereias. Só queres o teu beliche. Arrastas-te dali para fora, para onde o ar é um pouco mais puro. Já passou o enjoo mas sentes a cabeça pesada. Levantas os olhos do chão com esforço e é com enorme surpresa que olhas em teu redor. Por todo o lado, estranhas criaturas passeiam no meio do escuro. Corpos com mais membros que o normal, plumagens de muitas cores e jubas estranhas. Grasnidos, roncos, latidos, zurros e toda uma selva de gritos soltados pelos animais mais exóticos e assustadores que alguma vez sonhaste ou imaginaste. Estás agora numa floresta encantada. Coragem. Hás-de conseguir encontrar o caminho para casa pelo meio das árvores e bestas coloridas. Caminhas com cuidado sem olhar muito para lado nenhum, não vá surgir alguma fada traiçoeira.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Mar verde como relva verde como mar

Alguns versos soltos para aliviar o tédio. Como num sonho. Queria falar sem parar. Sem ninguém a ouvir. Sem ninguém a olhar. E chorar enquanto falo, deixar as lágrimas correr, os olhos como torneiras estragadas, dois rios que não correm para lado nenhum porque não tenho mar. Percorrer margens verdes que nunca acabam e nunca ter de chegar. Não quero chegar mas também não quero ficar. Deixa-me andar por favor. Só quero andar sem ter de escolher o caminho. Sem ruas, sem passeios, sem semáforos, sem nada que me obrigue a parar. A sério que não estou à procura do mar. Sei onde ele está e vou na direcção contrária. Deixa-me afogar. Posso fazê-lo em terra. Até posso boiar. Ou será que assim se chama flutuar? Não. Eu sei que sentada no chão estou a boiar. Lá porque tu não vês... Não estou nada a chorar. Era mentira. Eu não choro. Nunca chorei. E também não minto apesar de não conhecer a verdade. Sei lá o que isto é. Chama-lhe coisas se quiseres. As tuas mãos não tocam no mesmo que eu nem ouvimos a mesma música nem vimos o mesmo filme nem gostamos das mesmas ruas nem sorrimos das mesmas coisas. Mas se tocamos coisas e podemos ouvir e podemos ver e sabemos gostar e sabemos sorrir, então é porque somos iguais, à nossa maneira. Mas lá porque estou a escrever não quer dizer que esteja a pensar em ti. Quem és tu? Quem és tu? Também não sabes de mim nem onde estou. Não vou deixar que me voltes a encontrar. Se vais sair fecha a porta quando saíres porque é para isso que ela aí está. E não digas adeus porque também já não disseste olá. Desilude-me mais. Eu ensino-te.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Bicho de sete cabeças.

Confesso que perdi o controle algumas vezes. Vezes em que a cada passo que dava conseguia sentir o medo a aumentar dentro de mim. Mas sem conseguir parar ou voltar para trás. Como um soldado que se aproxima de terreno inimigo. Sabe que não pode deixar o pânico vencer ou é o fim. Ou imagino que seja. Embriaga-se em adrenalina e por alguns momentos esquece-se de quem é ou como se chama aquela terra. Ou imagino que se esqueça. E só quando sai é que pensa sobre isso. Se é que pensa. Se é que sai. Já me esqueci de quem sou. Durante milésimos de segundo, ou em medidas fora do tempo, o meu cérebro não se inflamou de pensamentos. A minha epidemia privada hesitou. E quando voltei a pensar quis desafiar as leis e códigos com que estou programada. Quis desafiar-me. Mas a minha racionalidade doentia vence sempre. E eu fico sem saber se ganhei ou perdi.
Sou um bicho de sete cabeças. Todas servem para pensar. Não, sete não. Mais. Ainda há mais. Nunca tem fim. Não vai acabar. Não há espada que mate este estar. Vou ficando. A manhã acabou de raiar. À minha volta todos dormem. Sento-me na varanda. Subo o parapeito, pés no telhado. A luz não me incomoda, mesmo acabada de acordar. Deixo a pele do rosto absorver os raios de sol. Fumo um cigarro enquanto penso. E trauteio uma canção. Baixinho, porque gosto do mundo adormecido. Penso na tua beleza e espero que não tenhas noção. Porque é assustadora e tu pareces ter os pés assentes no chão. Lembras-te dos teus sonhos quando acordas? Hoje lembrei-me de ti. Desculpa, queria dizer que não me esqueci.

domingo, 20 de janeiro de 2008

É isto que sinto no meu labirinto.

Perco-me aqui. A luz não é muita e eu não sei o caminho para voltar. Já me embrenhei demasiado. Já fui demasiado fundo. Já me perdi. O meu passo é firme e decidido, vou em frente, mas não sei para onde estou a caminhar. Vou como cega. Não sei onde vai dar esta rua. Cá fora é tudo igual. Tudo igualmente cansativo. Mas há qualquer coisa que brilha algures e é para lá que quero ir. Quero entrar nesse brilho mas às vezes pergunto-me se não é debaixo da pele que devia procurar. Se tenho uma porta ainda não descobri como se abre. Por um momento tremi sem ser do frio, embora o ar me arrefeça. Acho. Talvez fosse tudo mais fácil se não existissem palavras. Ou talvez isso me deixasse imóvel. Mas as que tenho dentro de mim são demasiadas, em torrentes ininterruptas, abruptas, cruéis, dolorosas. Como se nas veias me corressem pedaços de vidro. Pedaços de qualquer coisa estilhaçada. Ou qualquer coisa ainda por nascer. Talvez ainda nem saiba o meu nome. Só tenho palavras debaixo da pele. Quase só. Sou como uma torneira estragada estupidamente à espera de conserto. Não há. Por isso deixo-as correr em silêncio. À espera. Queria extraí-las todas de dentro de mim, com uma precisão cirúrgica. É isso que tento. Ou talvez o esforço seja ridiculamente ínfimo. Não gosto de mentir. Eu já disse que não sei onde fica a porta. Só nunca mo disse olhando-me nos olhos. Não há espelho onde isso caiba. Vou virar aqui. Talvez seja por aqui. Continuo sem saber onde estou. Não reconheço nada. Ou recuso-me a reconhecer. É tudo novo e desconhecido e é tudo velho ao mesmo tempo. Fecho os olhos durante mais tempo que o normal quando pestanejo. É que me cansa o que vejo.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Bem-vindo, viajante.

Senta-te e descansa os olhos nas minhas palavras. Que elas te pacifiquem. Que tragam calma ao teu turbilhão. Ou que façam mover os êmbolos parados e ferrugentos do teu coração. Que te façam nascer ou te deixem morrer. Que possas sorrir ou que te levantes e saias. Que te coces preguiçosamente ou que bocejes sem pudor. Que te enoje, que te comova. Que abra uma ferida qualquer ou tempere a que já aí estava. Dá um murro. Suspira. Olha por cima do ombro. Que se te embacie o olhar. Que se te suavizem as palmas das mãos. Toca nos teus lábios. Afaga um joelho. Descalça-te. Despe-te. Tapa-te se ficaste com frio. Arrepia-te e logo a seguir transpira, do calor. Que te dê vontade de foder. Qualquer coisa. Merda, reage porque eu não posso sair daqui para te bater.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

With great power comes great responsability, já dizia o tio Ben.

Suspiro atrás de suspiro, ergui um muro de lamentações. Quatro paredes de tijolo em meu redor. Esqueci-me da porta e descurei as janelas. Mas ainda posso olhar para cima e substituir mais um suspiro por uma inspiração profunda. Quando quiser posso saltar.
Nunca ninguém me disse que o mundo é bonito, fui eu que decidi. Fui eu que fiz os meus filtros. Ninguém precisou de me ensinar a sorrir. Sempre me deixaram escolher. Eu escolhi quando trocar de direcção. Eu escolhi quando voltar atrás. Eu escolhi quando parar. Eu escolhi quando sonhar. Eu escolhi o que era para sempre e o que tinha de acabar. Fui eu em tudo. Estive sempre de olhos abertos sem me dar ao luxo de pestanejar porque assim o quis. E quando o peso da responsabilidade foi tanto que me senti esmagar também gatinhei, rastejei um pouco até. Que me importa esfolar os joelhos ou sujar as palmas das mãos? Depois passa. Já passou. Está a passar agora mesmo enquanto escrevo. Sim, o poder é meu e é grande. Sinto os meus nervos esticar. Não tenho limites. Se quiser posso voar. Mas não quero. Não. Gosto da minha calma e nem costumo arrastar os pés. Mas se for preciso arrasto. E se for preciso choro e faço doer. E dói e arranha a garganta quando grito. Mas grito se tiver de ser.