domingo, 21 de setembro de 2008

Poema do caminho para casa

velozmente
a paisagem
e o chão que corre
muito abaixo dos meus pés

um corredor de árvores
velozes
por cima da minha cabeça
quase lhes posso tocar
mas não posso
e elas passam
velozmente
por mim
que estou parada

o movimento e eu
formamos uma dicotomia singular
com pouco espaço para o cinzento

a velocidade aperta-me
e deixa-me neste lugar acanhado
em que não me posso esticar
e a trepidação
também me oprime
como se eu fosse ruir
a qualquer momento
como um prédio novo
de alicerces instáveis

comecei a ser construída pelo telhado

o que é que treme?
sou eu ou o mundo em que me deixo envolver?
é o chão?
sou eu?

a velocidade concilia-se comigo
o meu coração também corre
velozmente
assustado
debaixo de tanto verde

veloz
tropeça
e eu rio
porque posso
e faz passar

hoje não dormi
mas acordei com vontade de chorar
vou para casa
mas não posso ficar
começo a rir
devagar

condiz comigo
esse riso cruel
condiz comigo
esse olhar parado
fica-me bem
a paisagem acelerada
nos olhos
velozes

sábado, 20 de setembro de 2008

Reencontro

Play

Olharam-se nos olhos e ele disse:
- Andei a perder o meu tempo contigo. És das pessoas mais desinteressantes que já conheci.
Ao que ela respondeu:
- Não viste nada.
E, fechando o punho direito, puxou atrás o braço e assentou-lhe um soco no maxilar esquerdo, deixando-o a escorrer um fio de sangue pelo canto da boca e partindo dois dedos da mão: o médio e o anelar.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e, sem dizer nada, beijaram-se uma e outra vez, tentando em poucos minutos recuperar o tempo perdido.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e, sem dizer nada, ele beijou-a. Mas ela afastou-o bruscamente, dizendo:
- És das pessoas mais desinteressantes que já conheci. Não me faças perder mais tempo.
E voltou-lhe as costas.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e ele disse:
- Eu gosto de ti e sei que também gostas de mim. Já chega de perder tempo. Fica comigo.
E ela respondeu, com dureza:
- Eu não mereço ser amada, eu não sei ser amada. Não percas o teu tempo comigo porque eu vou sempre escolher o escuro. De lá vejo melhor. É por isso que vejo tão bem o amor. Porque estou à sombra. Não vês a cor da minha pele? É pálida.
Sentindo-se dominar pela revolta, ele pergunta:
- Mas podia ser diferente. Como é que podes não escolher o amor?
- Já disse. – respondeu ela, com muita calma – Para o compreender melhor. Estás a ver esta? – e apontou para o chão, para a sua própria sombra – Nem tu a podes iluminar. Ninguém pode.
E voltou-lhe as costas, para sempre.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e ela disse:
- Não podes fingir que este encontro não significa nada. Vamos fazer de conta que nunca chegámos a perder tempo e tentar outra vez. Fica comigo.
E ele respondeu, com dureza:
- Foi muito fácil apaixonar-me por ti. E inacreditavelmente difícil esquecer-te. A que é que achas que dou mais valor?
Abismada, ela pergunta:
- Como é que podes não escolher o amor? Podia ser diferente, desta vez.
- Nunca é diferente com ninguém. É sempre tudo igual. E eu não estou a não escolher o amor. Simplesmente escolho não o ter contigo.
E voltou-lhe as costas, para sempre.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e após um breve silêncio, ela disse:
- Há quanto tempo… Então, ‘bora tomar café?
Ele sorriu e respondeu:
- ‘Bora!
E afastaram-se os dois, rindo, como velhos amigos.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos por uma breve fracção de momento e, apressadamente, desviaram o olhar fingindo não se ter visto, seguindo cada um o seu caminho, em direcções opostas, ambos imaginando que se tinham beijado.
Para sempre.

Stop

The End

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Cena de paixão escaldante improvisada

Apenas duas cadeiras. E eles sentados frente a frente, sem nada entre si a não ser o ar que partilhavam em respirações nervosas.
- Então, o que é que tens feito? – perguntou ele - Não sei nada de ti há meses.
- Hhmm. O de sempre. Nada de especial. Apaixonei-me e voltei a desapaixonar-me nos entretantos mas fora isso, fui eu e a praia. – respondeu ela.
- Não tiveste saudades minhas?
- Sinceramente, não pensei muito em ti. Volta e meia lembrava-me da tua cara mas esquecia-me logo a seguir. Sem ofensa. Aliás, agora que penso nisso, é estranho. Quando me lembro de ti, estás sempre muito sério. Costumo lembrar-me das pessoas quando estão a rir, às gargalhadas mesmo.
- Estás a tentar dizer que não tenho piada? – provocou ele.
- Não, até tens a tua graça. Suponho que as minhas recordações de ti não sejam muito felizes. Não são. – e encolheu os ombros, com uma certa indiferença.
- Nesse caso devíamos fazer alguma coisa para mudar isso. – soerguendo-se, beijou-a impetuosamente. A princípio ela correspondeu com intensidade, desencostando-se da cadeira na direcção dele e agarrando-lhe o pescoço com as duas mãos, depois do que o empurrou bruscamente e se levantou de um salto, ofegante. Com toda a força que tinha, deu-lhe um estalo na face esquerda.
- Podes parar por aí. – disse, com azedume.
- O quê? Vais dizer que não te sentes atraída? Não foi isso que me pareceu. – desafiou ele, com um sorriso sobranceiro, agarrado à cara.
- Se eu beijasse e fodesse todas as pessoas por quem me sinto atraída, para além de bissexual, era uma puta. Ora não sou nem uma coisa nem me considero ou aspiro à outra. Podes parar. – repetiu, já com a respiração mais calma, mas nem por isso com o coração menos acelerado.
- Quem é que falou em foder?
- Não se falou mas pensou-se. Não me chames estúpida. Sei bem que estás a pensar por aqui – agarrou-lhe os testículos – e não por aqui. – largando-os, bateu-lhe com os dedos na testa, furiosamente. – Eu não gosto das coisas pela metade. Quando quero, quero tudo. Por isso não quero. Podes parar. – voltou a repetir.
- Desculpa. – disse ele, largando a cara humildemente, chegando mesmo a corar de nervosismo, sem saber o que fazer a seguir.
Ela olhou para aquele rosto acriançado e leu o embaraço dele. Atirando a cabeça para trás, suspirou, impaciente. Teria de ser ela a tomar as rédeas. Deu-lhe outro estalo, na mesma face. Ele continuou sem reacção, olhando-a fixamente, indeciso. Ela voltou a esbofeteá-lo, desta vez na face direita. Subitamente, decidindo-se, ele ergueu a mão e, sem se conter minimamente, retribuiu o estalo. Ela viu estrelas e, ainda meio zonza mas contente por finalmente o ter arrancado do bloqueio, puxou-o bruscamente pelo cós das calças, beijou-o o mais agressivamente que conseguiu e despiu-lhe a camisola, atirando-a para longe, pelo ar.
Parando, romperam os dois em gargalhadas nervosas enquanto a assistência rompia em aplausos, assobios e comentários jocosos:
- Come on baby, light my fire!
- Eh, porno stars aí!
- Hardcore, heavy-metal!
- Desculpem lá mas isso foi muito à reality-show! Que bimbos, pá!
- Boa. – rematou a encenadora, fazendo-lhes sinal para se sentarem. Eles assim fizeram, satisfeitos, dando lugar ao próximo exercício.
- Já te estavas a esticar, bebé. – disse ele, enquanto voltava a vestir a camisola.
- Estava em personagem, pá. – e desataram os dois a rir outra vez.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Eyeliner grief

Hoje voltei a pintar os olhos de preto
Não sei se por ter voltado ao sítio em que te conheci
Talvez em sinal de luto
Por ter enterrado o meu amor por ti.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Poema de pasmar

Estou aqui sentada
permanentemente espantada de tudo o que vejo ou sinto
e tudo o que não vi nem senti também me espanta.
Este pasmo absoluto de tudo,
como o de um tolo que sai de casa pela primeira vez e de tanto pasmar se baba,
surpreende-me ele mesmo,
a mim, que pensava já saber tudo
ou pelo menos aquilo que importa saber.
Afinal, não sei nada.
Porque sempre que vejo uma coisa velha ela parece-me nova,
sempre que vejo as mesmas pessoas elas parecem-me diferentes,
mais velhas, mudadas.
E fico pasmada.

Espanta-me o meu quarto desarrumado,
quando sempre precisei do caos para me sentir viva.
Espanta-me o meu adiar de tudo,
quando sei que adio na esperança de que o prolongar torne tudo mais real
e menos efémero.
Espanta-me a minha vontade de escrever,
quando nunca quis outra coisa na vida
a não ser aquilo que me dá vontade de escrever.
Espanta-me a maneira como sinto as coisas,
quando já analisei em mim tudo o que há para conhecer.
Espanta-me a persistência de sentimentos gastos,
quando sei que fui eu que fiz por mantê-los acesos.
Espanta-me a forma do meu corpo,
quando me vejo nua ao espelho todos os dias.
Espanta-me o prolongar alegre da minha vida,
quando no fundo sempre desejei morrer mais cedo.
Espanta-me o amor que sinto por pessoas e objectos e lugares demais,
quando já conheço de cor o seu cheiro a podre.
Espanta-me ser igual a todos os outros,
quando cheguei a acreditar quando me disseram que sou especial.

E fico para aqui pasmada,
sentada no meu lugar.
E não faço mais nada senão pasmar.

Sou um desperdício de espaço,
um saco roto por onde cai o que há.
Ou o que havia.
E havia muita coisa:
esperança, vontade, qualidades, talentos, beleza, um grande coração humano.
E tudo isso fica espalhado pelo chão desarrumado do meu quarto,
misturando-se com as meias sujas, os jornais do ano passado,
os sapatos, os talões escritos por mim no avesso,
os livros, as canetas que não escrevem
e o cotão.

Não consigo deitar nada fora
porque me parece tudo novo, diferente e original
de cada vez que olho.
E é tudo velho, tudo velho
e está tudo visto, tudo gasto.
Gostava de ser mais ecológica e reciclar a minha vida
porque sei que este espanto todo
não passa de sentimentalismo barato.

sábado, 13 de setembro de 2008

Acercai-vos e atentai:

Disponível para bajulações,
sensível a insultos
e reclamações;
afoita na resposta
(que será amiga e bem disposta).

Sim, é só para dizer que, ao fim deste tempo todo e a pedido de várias famílias, lá me dei ao trabalho de criar um email para o blog (mas uma rimazita estúpida cai-me sempre bem).

seriousandsober@gmail.com

Dedicado aos comentadores tímidos que têm algo a dizer mas não apreciam a praça pública. Façam o favor de escrever, que tenho saudades vossas.

Saudações coisas.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Vislumbre (de um futuro distante num momento de clarividência)

Nada me inspira maior terror
que a visão da tua descendência.
Que mais poderia causar tamanha dor
senão os teus traços num rosto de inocência;
a multiplicação dos teus genes
misturados com outros que não os meus
tornando acres as lembranças perenes
do sabor dos meus lábios sobre os teus.

Alivia-me saber-te perpetuado
e encho-me de uma ternura brutal
mas o meu olhar torna-se aguado
afogando qualquer instinto maternal,
a que nem eu sou imune,
transformando-o num ódio visceral
nascido do meu ciúme.

Os meus melhores sofrimentos são antecipações
e nelas reside a minha arte:
dos ouvidos correr-me-à sangue em borbotões
por nunca conseguir calar-te.

domingo, 7 de setembro de 2008

Bloodlust

Já me serviram vários corações,
em bandejas até.
De ouro, prata
e mesmo tabuleiros de plástico colorido.
Os que me foram recusados
arranquei à mão cheia,
a quente ou a frio,
conforme o comprimento do ano
ou a altura do mês.
Garras pintadas de vermelho.
Alguns beijei-os apenas
para provar o sabor a sangue,
outros mordisquei,
uma dentada aqui ou então.
Uns poucos mastiguei
com toda a crueldade de que me julgo capaz
(pobre rapaz!).
Cuspi pedaços, babei-me um pouco,
pequenas veias prenderam-se-me nos dentes.
Lábios encarnados
(carnudos, sujos de cardio-carne, ficção científica, bem os observei e cheirei).
Mastigo bem.
Mas não engulo.
A minha mãe ensinou-me
não se brinca com a comida
mas há coisas que não aprendo
faz de conta que não sei.
Sou uma menina má.
Má pessoa, má pessoa.
Mas limpei o sangue debaixo das unhas.

sábado, 6 de setembro de 2008

The Boy of Gold

He was made of gold
made of pure bright gold
and i threw him into a river
a deep long river.
He sinked and stayed
buried in the deep waters
There he stayed
buried in blissful forgetness,
Forever held by forces
still unknown to me.
There he was hold
by good forces
away from me.
In the margin i waited
not knowing i was waiting
or what i was waiting for.
My eyes resting from his brightness
my heart stopping with fear.
A marginal, i'm still waiting
not wanting to wait
held by some forces
which i do not control.
Kept by hurtful forces
staring powerless
at the waters
at the boy of gold
covered by a silver liquid blanket of forgetness
drowned in bliss.
And i, staring senseless
eyes covered by warm water
not wanting him back
yet unable to move
stuck in sweet agony
held by tenderness and greed.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Suspensão

Sou uma estátua de pedra e osso
sentada no centro de um quarto.
Não ouço o leve raspar de unhas na minha porta
nem o crânio que tenta fundir-se com a parede.
Não sinto frio nos pés
nem calor nas orelhas.
(Ninguém fala sobre mim mas todos me podem sentir.)
Não vejo o tapete sujo de sangue
nem os móveis cobertos de pó e de pele morta.
Não sinto a chuva que me molha
nem os estilhaços da janela podem cortar a minha carne de pedra.
Imóvel, não sofro nem um arranhão.
Atam-me com cordas
e erguem-me com um guindaste.
Lançam-me ao mar
para abafar o som da minha presença sufocante
e bato no fundo de areia.
Já não sou pedra.
A minha carne pulsa outra vez,
livre.
Abraço os joelhos
e encosto-lhes a boca.
Sustenho a respiração.
Recordo o líquido amniótico
e, de cabeça para baixo,
deixo-me boiar.
O calor afaga a minha coluna vertebral,
dentro e fora de água.
Ora fora, ora dentro.
Ainda não estou pronta
e o mundo lá fora pode esperar.
O lápis está afiado
(aperto-o com força na minha mão, o bico de carvão magoa-me o polegar)
mas as ideias ainda não puderam assentar
e os sonhos correm como a água,
escorrendo-me dos cabelos para o mar.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Poema de um abrir e fechar de olhos.

[A minha curiosidade de ti
aumenta
a cada breve troca de palavras.

O tom ruborizado da minha face
adensa-se
a cada subtil troca de olhares.

Se me tocas ao de leve, sem querer,
tremo.
Se me tocas de propósito,
petrifico.


(Fecha os olhos. Abre os olhos.
Fecha-os outra vez. Volta a abri-los.)


A cada nova palavra
que pronuncias
procuro descobrir o teu interesse
mas tu nunca te denuncias...
Como se eu já não soubesse.

A cada nova palavra
que te dirijo
camuflo as minhas paixões
como se os verbos fossem esconderijos.
Sei bem o que me espera:
desilusões.]