segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Da espera ao frio.

Porque não tinha nada para fazer enquanto esperava, li um poema que tinha no bolso. Da ideia de fazer o tempo passar, já que morrer nunca morre. Comoveu-me o poema porque falava de solidão, entre outras coisas e entre nada, e eu sentia-me só. O frio também não ajudava. Estava um frio dos danados, já que dizem que no inferno faz calor. Os meus dedos nus, gelados ao frio, mal sentiam as folhas por entre si. E tinha de ler as letras cortadas entre os cabelos que o vento me empurrava para diante dos olhos. À bruto. Ah, bruto! Vento em bruto, e do frio, gélido, que é mais bonito, menos escuro. O gelo é mais claro que o frio. Mais branco, por causa da geada, ou até mesmo da neve. Mas ali até estava sol. Eu só estava à sombra porque escolhi sentar-me no banco de pedra cinzenta clara, a dar para o azul. E o azul ainda era mais frio que o branco, se calhar porque estava à sombra. E à minha frente estava um tapete de relva enorme. Muito comprido. Estava verdinho e bem tratado. Devia ter almoçado melhor que eu, que a sopa só estava morna. E batia o sol na relva. Sem força, devagar. Meigo como uma festa. Apeteceu-me ser um bicho para me deitar ali e espreguiçar-me. Quem sabe se dormir. Talvez sonhar. Mas morrer não me apetecia muito. Se bem que estava a morrer de frio. Mas não fui bicho, porque era pessoa e tive de fazer de conta que era isso mesmo. Fazer de bicho de conta e enrolar-me era melhor, mas não podia ser. Estava um bocado confusa, devia ser do sono, ou das palavras na cabeça que não me deixaram dormir. E levantei-me meio à toa, sem saber bem onde ia, mas só soube que não sabia no fim de me ter levantado e dado uns passos para lado nenhum. Já não me podia sentar no mesmo sítio agora, então. Dei uma volta ao bilhar grande, que é como quem digo à relva verde que tanto me apetecia. Vi que as escadas também estavam ao sol e fui lá. Eram brancas, deviam estar menos frias que o banco. Tinham um bocadinho de verde nos interstícios da pedra, da humidade. Do frio. Claro, eram de pedra, estavam tão frias como o banco. Mas pelo menos agora, então, o sol batia-me nas costas, se bem que eu não me importaria que fosse com mais força, que continuavam as minhas mãos a enrugar-se com o frio. Mas já que ali estava deixei-me ficar. A esperar o que faltava. Já não era muito e eu dali via o caminho. Ainda pude reler o poema, sem me preocupar. E pelo menos não choveu.


terça-feira, 31 de outubro de 2006

Reflectes-me a verdade

Reflectes-me a verdade
porque tenho os olhos cheios dela.
E não se trata de vaidade;
és apenas mais uma janela.

Nos momentos dispersos de solidão
és a minha melhor companhia;
entretenho-me a procurar-te, em vão,
porque não és mais do que eu seria.

Olho para o céu, procuro a rua;
espero que neve, espero pela chuva.
Mas nos espelhos não há lua
há apenas, por mais que chova, a minha face difusa.

sábado, 7 de outubro de 2006

Sob o signo de Platão

O teu sorriso é como uma noite nublada:
a tua língua é a lua, redonda e macia, às vezes pontiaguda;
os teus dentes as estrelas, cintilantes ou amarelos, não sei bem;
e os teus lábios são as nuvens, fofas e absorventes, que encobrem.

Deixa que cubram os meus,
deixa que absorvam o meu beijo.

Beijo-te.

Os teus olhos são cometas
que me atingem no peito brutalmente,
com o impacto e o fogo de mil vulcões.
Não voltes a voltar-te para trás,
que o álcool ferve-me as veias
e o meu coração bombeia
uma ternura violenta e nostálgica
que ameaça derreter o arame farpado
em que me tinha amortalhado
face a essa lava oftalmológica
(se até mesmo à visão da tua nuca...)

Beija-me.

Chamo-te Orfeu,
que insistes em olhar para trás
nessa curiosidade pagã.
Contra os teus olhos incandescentes
que mais posso eu
a não ser desejar ver-te amanhã?

Deixa-me beijar-te outra vez.
E beija-me uma última vez,
que por ora me estás interdito
e não sei se é por seres proibido
que cada vez mais me tens apetecido.

Acho que a culpa é do Platão, esse maldito!

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Recomeço (?)

A PRIMEIRA PALAVRA
é sempre difícil de escolher. O meu mal é preguiça. Falta de vontade. Por maior que seja a inspiração, nunca é suficiente. E são tantas as ideias, tantas as palavras que tenho por escrever, que me perco nelas e não dou forma a nada, a não ser em pensamento. Passo a vida a escrever em pensamento. Por isso achei que estava na altura de tentar pensar por escrito. Não que os meus pensamentos sejam assim tão elevados que mereçam ser lidos, mas pelo menos desta forma têm um propósito, uma finalidade. Um depósito, vá. É isso mesmo: um depósito de ideias. Pode ser que um dia mais tarde venha vasculhar nelas e valha a pena limpar-lhes o pó.

UM PEQUENO GRANDE PASSO
Parece tão fácil. É apenas pegar numa caneta e num papel. O resto já cá está. Ou então surge como que por magia. Geração espontânea. Maravilhas da ciência. E que saudades do cheiro da minha caligrafia. Palavras acabadas de escrever. E, no entanto, estão quietas há tanto tempo (parece mesmo muito) que libertam um leve aroma a bafio. Saiam daqui, ideias velhas! Deixem-me de vez. Chega de colo. Estão para lá de maduras, quase fora do prazo. E recorrentes, as sacanas.
Eu sei que as estou a expulsar, mas no fundo tenho medo de as perder. E se se esgotam? E se não houver outras novas? Se me secam nas veias, o oxigénio não chega às células. Mais vale parar de respirar.

OS MISTÉRIOS DA VIDA
São muitos, é verdade. E não tenho resposta para nenhum. Mas o que me apoquenta agora é este. Porque é que me privo daquilo que gosto? Do que me faz existir; ser real; verdadeira? É que este rosto de papel é o mais parecido comigo que tenho. Como costumo dizer que os óculos-fundo-de-garrafa são o meu verdadeiro eu. Assim como fechei esse eu na caixa, quererei trancar o resto? Não chega já de fugir?
Ganha juízo; muda de vida. Deixa-te de lérias, mulher!

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Olhares

Já o conhecia de vista, há muitos anos. Sempre o achei giro e interessante mas agora foi diferente. Olhei para ele e fez-me lembrar alguém de quem já gostei. Alguém por quem estive apaixonada. E houve qualquer coisa que se mexeu cá dentro. Ele atrai-me e assusta-me ao mesmo tempo. Não consigo evitar fixar o olhar nele. E mete-me medo porque não sei se o que vejo é um fantasma, um prenúncio, uma promessa, ou um aviso. Fico confusa. Ele é um estranho e é inalcançável. E eu não sei se são apenas recordações antigas ou se é mesmo ele que me faz sentir assim. Só sei que aquele olhar, aquela imagem dele a voltar-se para trás, me ficou gravada com uma solidez tal que me persegue, me assombra, não me dá descanso. Quero voltar a vê-lo. Preciso de o voltar a ver.


Reparei nela quando entrou e olhou para mim. A cara não me é estranha, acho que a conhecia de vista. Não pensei mais nisso até que, no outro dia, me voltei para trás e lá estava ela. A olhar. Deixou-me curioso, confesso. Olhei para ela mais algumas vezes e confirmei que ainda me olhava. É estranha, ela. Tem um ar de abandono e um olhar diferente, penetrante. E nem disfarça. Quando eu olhei ela não se desviou. Continuou como se nada fosse. Chegou a ser assustador. Estará apaixonada? Não a conheço mas até parece ser uma miúda interessante. E é girinha e tudo. Mas não sei se a quero voltar a ver. É que é incómodo ter o olhar de alguém fixo em nós. Mas tenho curiosidade. Gostava de saber se não estava a alucinar.

terça-feira, 1 de agosto de 2006

When everything goes according to plan
you just feel so right
like you do have a place in the world.
Your baloon is filled
and you can't even remember
why you used to be such a sad person.
It doesn't even matter if it's raining
and you're wet
'cause tomorrow is so bright
and there'll still be some more good surprises
you could bet.

sexta-feira, 21 de julho de 2006

Uma questão de vida.

A primeira coisa que fiz ao nascer foi chorar. Nasci aos gritos porque queria respirar. E ninguém me avisou para o que vinha. Ninguém me preveniu sobre o mundo em que nasci. E parecia que o mundo todo estava ali, nos braços quentes da minha mãe e no leite que me alimentava. Depois cresci e comecei a perceber mas fingi que não sabia porque era criança e é suposto as crianças serem inocentes e felizes e eu não queria assustar ninguém. Então cresci mais um pouco e decidi que queria mudar o mundo. Fazer dele um sítio melhor. Tinha o coração cheio de sonhos e a cabeça cheia de ilusões. Até que voltei a crescer e percebi que o mundo não é assim tão fácil de mudar. Fiquei um bocadinho mais egoísta e decidi cuidar de mim.
Mas não sei bem o que acontece depois. Será que os sonhos voltam? Estão apenas adiados? Será que os esquecerei para sempre? Será que os cumprirei? Será que mudam ou no fundo são sempre os mesmos?
Não é verdade que a morte seja o maior mistério de todos. Essa é simples e fácil de compreender. A vida é que é difícil de prever.




*




"I sensed my loss
before I even learned to speak
and all along I knew it was wrong
but I played along with my birthday song."

To Forgive, The Smashing Pumpkins

quinta-feira, 22 de junho de 2006

21

Está oficialmente inaugurado o meu vigésimo primeiro Verão!
Que comecem as festividades!

segunda-feira, 19 de junho de 2006

Sou uma cicatriz ambulante.

Será que realmente quando chegar ao fim da minha vida vão ser poucas as pessoas que verdadeiramente fizeram diferença? É o que se costuma dizer. Não consigo deixar de duvidar.
Vejo esta fase da minha vida como uma espécie de fim do começo. E quando olho para trás, as lembranças são mais que muitas e há tantos marcos históricos que levaria páginas e páginas a descrevê-los. E a minha vida nem tem sido assim tão interessante. Mas se me puser a pensar nas pessoas que tiveram um significado especial, nas que mudaram qualquer coisa em mim, que me acrescentaram, que fazem parte do meu eu actual, de uma maneira ou de outra, são muitas. Muitas, a sério. Os dedos das mãos não chegam para as contar, nem de perto, nem de longe. A verdade é que sendo tão nova tenho uma lista longa de pessoas, de histórias, de cicatrizes. No fundo, são estas que me formam, que me dão forma, que me transformaram. Uns eram amigos, outros nem por isso, outros foram paixões, outros ainda foram exemplos. Dos amigos e das paixões, há muitos que sobreviveram no meu coração, outros não sei bem em que canto de mim os guardo, talvez apenas no das recordações.
A questão reside provavelmente na idade. Enquanto somos jovens, damos muita importância a tudo. Talvez com o tempo passe. Também dizem que o tempo cura tudo. Mas o tempo não cura a saudade. O tempo agrava-a. E eu já tenho muitas saudades. Se fosse escrever um livro sobre cada uma das saudades que sinto, tinha material para uma colecção inteira, para uma vida inteira. Material constantemente renovado. Porque há sempre saudades novas que se vêm acrescentar às antigas, e as antigas nunca morrem.
A saudade é o que vem preencher o vazio deixado por alguma coisa ou por alguém. E é este constante sentimento de perda que me oprime. É a saudade que me aperta o coração. É por cima da saudade que me custa a respirar. É na saudade que perco o olhar quando ele está distante. Tenho tantas saudades... Tenho saudades de um amor que estrangulei à nascença. Tenho saudades de outro amor, que não me deixava comer, nem dormir, nem nada, porque só tinha tempo para amar enquanto amei. E também tenho saudades do primeiro, tão tímido e tão criança que todo ele era silêncio. Tenho saudades de uma amiga que fiz quando tinha doze anos e hoje não sei que será feito dela. - "Bye, angel." - Nunca soube dizer adeus. Há coisas tão fortes que nunca morrem. Há histórias que o tempo não apaga. No mundo da saudade, o tempo não existe. Não importa se foi esta tarde ou há dez anos. O que resta é a saudade.
E se, como dizem, antes de morrer me passar diante dos olhos o filme da minha vida, e nele estiverem incluídas todas as pessoas importantes para mim, vai ser uma morte lenta, mas nada dolorosa. Ou então, se para minha surpresa, o filme for mesmo rápido, vou perceber que vivi enganada. E só aí é que vou dar o braço a torcer. Depois de morta.





*




ISTO

Não queiras, não perguntes, não esperes.
Isto que passa como vida e tu
medes em dias, horas e minutos,
ou como tempo passa e vais medindo
em rugas e lembranças e em sombrias
e plácidas visões de coisa alguma,
às vezes sorridentes, mas sombrias;
sim:
isto, a que dás nomes, que separas
do resto em que surgiu, de que surgiu;
isto, que já não queres, não interrogas,
de que já nada esperas, mas que queres,
por que perguntas sempre, e por que esperas;
isto, que não és tu, nem vai contigo,
nem fica quando vais; em que não pensas,
porque ao medir apenas medes e
nada mais fazes que medir - só isto,
apenas isto, isto unicamente:
não queiras, não perguntes, não esperes,
que o pouco ou muito é tudo o que te resta.

Jorge de Sena

segunda-feira, 5 de junho de 2006

"Just keep swimming..." ou "A Piscina."

Ela sentia-se como se vivesse eternamente presa numa piscina. Uma piscina de sonhos e divagações, desejos e ambições, medos e preconceitos, dúvidas e incertezas. Se às vezes conseguia nadar alegremente no meio daquilo tudo, outras tinha de fazer um esforço enorme para erguer a cabeça e respirar. Era por isso que às vezes se deixava apenas boiar. E a piscina não tinha escadas por onde subir. E era tão grande que ela se perdia e não conseguia encontrar a zona segura, onde tivesse pé. Para subir teria de fazer força com os braços e içar-se a ela mesma, suportando todo o peso do seu corpo. Mas o rebordo era tão alto... Às vezes queria subir, para se poder secar de toda aquela confusão. Às vezes tinha tanto frio dentro de água que ficava com as pontas dos dedos engelhadas, os lábios ganhavam um tom arroxeado e os ossos doiam-lhe. Quando mergulhava muito fundo, ardiam-lhe os olhos por causa do cloro e tinha de se apressar para vir à tona chorar. E enquanto o tempo passava, a água da piscina ia aumentando de volume com as lágrimas. Aos poucos, foi-se tornando uma piscina de água salgada. Até que ela chegou a um ponto em que se sentiu extenuada e pensou em parar de nadar; pensou em deixar que aquela água, que já lhe gelara o coração, lhe invadisse também os pulmões. Assim poderia finalmente descansar, no fundo negro da piscina, que ela nunca conseguira alcançar e tinha tanta curiosidade em conhecer. Mas foi nesse momento que sentiu uma mão a puxá-la pelo pé. Tornou-se leve como uma pluma e flutuou no ar. Enquanto era içada, escorreu toda a àgua que tinha no corpo e nos cabelos. E então, sentiu de novo os pés no chão quente e firme do mundo real. E a realidade foi mais encantadora que algum sonho podia algum dia ter sido.

quinta-feira, 1 de junho de 2006

Para rir ou para chorar, é p'ró menino e p'rá menina, cada cor seu paladar.

- Porque vais?

- Porque quero. Porque tenho vontade...

- Vontade de partir?

- Vontade de fugir.

- E de que foges tu?

- De nada. Fujo do nada.

- No fundo gostavas de ficar.

- Não quero ficar. Mas gostava de ter uma razão para não querer partir.

- É triste, a tua história.

- Qual história? Não há história nenhuma! Não tenho nada para contar.

- Não sei dizer se me fazes rir ou se me dás vontade de chorar...

terça-feira, 16 de maio de 2006

Sombra de luz.

Eu estava do lado de cá e tu estavas do lado de lá. Era uma barreira de metal o que nos separava. Como se dividisse duas realidades paralelas. Eu podia ouvir a tua voz no meio do meu escuro e tu tinhas tanta luz à tua volta que duvidei que me pudesses ver. Cruzei o meu olhar com o teu e tu cruzaste o teu olhar com o vazio que estava na minha direcção, à minha volta e dentro de mim. Acenei-te com a mão, na esperança de que te apercebesses da minha presença, mas deixei de te ver. A luz apagou-se e foste embora. Agora tenho a tua voz a ressoar-me na cabeça, como música nos ouvidos. E o teu perfil é como um decalque no meu olhar. Vejo-te nos vidros das janelas, nas paredes vazias e nos rostos dos outros. Vejo-te nas folhas de papel, como se fosses uma sombra de luz de muitas cores. Hei-de procurar-te um dia destes. Para que possas deixar de ser esta forma indefinida que tenho tatuada na íris. Para que possas passar para o lado de cá dessa barreira metálica. Quero dar-te uma nova cor. Para isso, hei-de procurar-te um dia.

Estrela Cadente

A estrela caiu e partiu-se. Os cacos amarelos no chão são como pedaços de mim. Dizem que o tempo cura tudo, basta ter paciência. Basta ter esperança. Mas a estrela vai ficar partida para sempre, por mais cola que eu use. A ferida sara mas fica a cicatriz. A paciência esgota-se porque estamos cansados de ser desesperados. E os cacos pequeninos são impossíveis de apanhar. Mais tarde ou mais cedo vou ter de os varrer. E a estrela vai ficar incompleta para sempre. Vão faltar sempre pedacinhos, por mais minúsculos que sejam. Podemos curar, mas nada volta a ser o que era. Nunca mais vamos ser iguais ao que fomos antes de quebrar. A estrela partiu-se e eu fiquei sem saber se foi porque fechei a porta com força demais, com raiva demais, ou se foi porque tremeu de medo e desgosto ao respirar a tua cegueira do ódio que latejava no ar, e se desiquilibrou. Não importa de quem foi a culpa. Já não há nada a fazer.
A estrela caiu e partiu-se.


quinta-feira, 11 de maio de 2006

Quem me dera.

Naquela angústia, naquele pânico, naquela ânsia de viver. Quem me dera ser como tu. Quem me dera saber morrer.

terça-feira, 9 de maio de 2006

Equinócio

Ela era uma forasteira. Chegou à cidade num dia de sol, vinda ninguém sabe de onde nem porquê. Trazia apenas uma mochila às costas, com os seus escassos pertences. Vestia umas calças de ganga e uma blusa de verão, bastante puídas, e calçava umas botas castanhas de montanhismo, cobertas de pó. Os seus cabelos longos e escuros, voavam com o vento, soltos e em desalinho. Era bonita. O seu ar de aventureira gerou desconfiança mas o mistério que trazia consigo despertou a curiosidade geral.
A única pessoa com quem foi vista a falar foi com a dona da casa do fim da rua. Era uma casa grande com um lindo jardim, rodeada de plátanos. A dona da casa era uma senhora elegante, de voz suave, com os seus sessenta ou setenta anos. Usava os cabelos brancos apanhados num bonito rolo no alto da cabeça e tinha uns olhos sábios, azuis e bondosos. Quem sabe se elas já se conheciam? Podiam até ser familiares distantes. Mas também podiam ser apenas duas desconhecidas até ao momento em que foram vistas juntas.
- É com o meu noivo que deves falar. - foi a resposta que a senhora deu à rapariga. Não se sabe qual seria a questão. Não se sabe o que ela pretendia naquela tarde de sol em que chegou à cidade com o mundo reflectido no castanho dos olhos.
A rapariga foi ao encontro do noivo da dona da casa do fim da rua. Ele era um homem de ciência, nos seus trinta e alguns anos. Usava uns óculos de lentes grossas que lhe escondiam os olhos verdes. Foi através deles que a viu. Linda e perturbante. A calma dela e o seu sorriso constrangedor provocaram-lhe um estranho efeito. Como se ficasse com febre de repente. Talvez fosse do sol forte, talvez fosse da mudança de estação. Pediu-lhe que ali aguardasse alguns momentos, enquanto ia falar com a sua noiva. Para confirmar alguma coisa, talvez. Doeu-lhe a surpresa com sabor de desilusão que leu nos olhos dela. E deixou-a só. Se se ia casar era por amor. Que dúvida restava, então?
A jovem ficou sozinha na estranha divisão. Era um laboratório e ao mesmo tempo era escritório, sala, quarto, biblioteca. As paredes estavam forradas de estantes que para além de centenas de livros continham objectos e instrumentos desconhecidos, que ela se entreteve a observar enquanto pensava na estranha personagem que acabara de sair. Ele tinha cabelos ruivos, compridos e escorridos até ao nível do queixo. E usava uma barba curta que ela tivera vontade de afagar. A bata branca que lhe chegava aos joelhos estava repleta de estranhas nódoas científicas e riscos de caneta.
Foi então que a sua atenção se desviou para a varanda. Era enorme e não tinha gradeamento. Era apenas um pedaço de chão ao ar livre. E encontrava-se lá um telescópio apontado ao céu que estava naquele momento repleto da mistura de tons quentes do poente. No momento em que ela se aproximou para ver melhor aquele espectáculo arrebatador que a natureza lhe oferecia, levantou-se um vendaval tremendo. O vento uivava, gritava, relinchava assustadoramente. Uma rajada empurrou brutalmente a rapariga para fora da varanda e ela ficou pendurada apenas pelos braços, à altura de dois andares.
Foi nesse instante que ele entrou, logo tomado pelo pânico. Caía um dilúvio. A tempestade destruíra o interior do laboratório (tinha até arrancado pela raíz os plátanos da casa do fim da rua) e as estantes caídas bloqueavam-lhe a passagem. Tentou desesperadamente empurrar os obstáculos que o separavam da rapariga e o impediam de a salvar. Ela riu do absurdo da situação e no momento em que ele conseguiu passar para correr até ela, veio nova rajada de vento que a elevou. Como se voasse, ela pedalou no vazio e foi impulsionada para os braços dele.
- Vês? Nem tudo é ciência. Isto agora foi magia.
Ele ajudou-a a despir as roupas encharcadas e afastou-lhe o cabelo dos olhos. Indicou-lhe o quarto de banho, onde podia tomar um duche quente. Mas ela não se moveu e continuou a fixá-lo. Lentamente, começou a desapertar-lhe os botões da bata suja e beijou o cientista incrédulo.
Fizeram amor no meio do caos que os rodeava, e foi como se o mundo fizesse sentido outra vez. Durante os momentos em que estiveram unidos naquela dança carnal em que a chuva que entrava pela janela aberta lhes fustigava os corpos enleados, o cientista fez a maior descoberta da sua vida. Descobriu o amor. Era diferente do carinho, da amizade, da admiração e dos outros sentimentos bonitos que nutria pela sua noiva. Ele desejava esta rapariga como nunca pensara que se podia desejar alguma coisa. Era luxúria, era paixão. Ele queria protegê-la de todos os males e cuidar dela. E sentia-se vulnerável perante o seu olhar. Era amor, enfim.
E quando ambos atingiram o auge das suas paixões, escutaram um estrondo pavoroso e inconfundível. Também vinha de cima mas não era um trovão. O cheiro da pólvora e do sangue não lhes deixou lugar para dúvidas. Ambos sentiram o mesmo projéctil penetrar-lhes as carnes, quase em simultâneo. Primeiro ele, depois ela. Tinham sido assassinados pela traição. E sem desfazer o abraço das suas pernas em volta da cintura dele, ela disse:
- Se sobrevivessemos, ficavamos com uma cicatriz para nos recordar a nossa primeira noite de amor...

Qualquer dia, sim.

Era bom que fosse sempre verdade quando respondo que sim se me perguntam se está tudo bem. Talvez devesse passar a responder "Não. Mas vai ficar. Vai ficar tudo bem."

sexta-feira, 14 de abril de 2006

Jean-Arthur, mon amour.

Sou uma fada verde desde sempre. O absinto estava no meu destino, eu é que não sabia. E o nosso amor é verde; é verde-absinto. Dancemos de garrafas vazias na mão, até cairmos zonzos e cansados. Pena não sabermos dançar. Pena dançarmos tão mal. Mas não importa porque contigo não há nada que não seja correcto e bonito. Nem o absinto. Contigo, as estrelas estão sempre alinhadas. Alinhavadas na nossa sede. Dancemos então, até cairmos. Dancemos, Jean-Arthur, até cairmos na areia escaldante do deserto, mon amour. Caídos de amor, deixemos os nossos corpos derreter com o calor. Sempre quis saber a que sabem os lábios de um poeta. Tu és o poeta rebelde. E os teus lábios estão quentes, Jean-Arthur. Esperava que estivessem frios como os dos homens mortos, mon amour. Mas os teus ainda murmuram palavras. E tens palavras de uma morbidez tal que ninguém te diria imortal.

Estamos deitados na areia; já bebemos, já dançámos, já nos beijámos. Parte a garrafa, mas cuidado com os vidros, não te cortes. Estás descalço. Chora agora, escondido no meio do meu abraço, porque para mim a tua poesia não é uma mera alínea. Estou contigo na Abissínia. O amor é um deserto e é a poesia que nos mata a sede. Ou pensaste que era o absinto? Não te afogues, não te esqueças. Jean-Arthur, és para sempre, mon amour.




*





"Nos desertos do amor andou Rimbaud,
Ninguém sabe se chorou.

E a poesia? Mera alínea?"


Lamento de Rimbaud, Sérgio Godinho

quarta-feira, 12 de abril de 2006

Numa noite qualquer.

- Onde é que queres que te deixe? Em casa? - perguntou ela.
- Não. Não quero que me deixes em lado nenhum. Nunca. - respondeu ele.
- Está bem. - disse ela.

Houve uma pausa.
E em seguida houve um beijo extremamente sensual em que o lábio inferior dela deslizou lentamente por entre os lábios dele. Tinham os olhos apenas semicerrados e não sorriam.

Vrruuuuuum!

E foram felizes para sempre.

segunda-feira, 10 de abril de 2006

Inutilidades com sentido:

- Gesto inútil de fechar os olhos para não ver as imagens que nos passam pela mente e torná-las ainda mais nítidas na escuridão;
- Gesto inútil de suster a respiração para acalmar o passo do coração e ficar sem fôlego, acelerando-o ainda mais;
- Gesto inútil de parar de andar porque nos tremem os joelhos e sentir que o chão nos foge debaixo dos pés;
- Gesto inútil de chorar para expulsar a tristeza e ficar o coração ainda mais seco e vazio que antes;
- Gesto inútil de dizer que não desviando o olhar e denunciar o sim que queríamos gritar;
- Gesto inútil de abrir os olhos com toda a força para não chorar e as lágrimas acumularem até não caber nos olhos e caírem livremente até termos de os cerrar.


Tolos que somos, desviamo-nos dos espelhos e tentamos enganar-nos a nós próprios, mas há coisas de que não podemos fugir. Para quê mentir?

quinta-feira, 6 de abril de 2006

Amanhecer.

A noite extinguia-se diante dos teus olhos. Pensaste que seria o momento oportuno. Mas não sabias que caminho havias de tomar. Enquanto o negro do céu se tornava violeta e depois azul e as estrelas desapareciam aos poucos, ficaste a pensar. Havia tempo. Não muito, mas um pouco era o suficiente. Pelo menos até que surgisse a manhã. Pensaste em caminhar depressa, muito depressa, quase a correr, até casa. Antes que o brilho do sol te cegasse os olhos desabituados da luz, ao despontar. Podias fechar as persianas do teu quarto e dormir até ao fim da tarde, sem sonhar. O descanso absoluto. Mas sabias que não ias conseguir porque as insónias eram agora a excepção que se tornara regra. Constantes. Sentias até que eram praticamente a única coisa com que podias contar, que tinhas de certo na tua vida.
Em vez disso, escolheste outra rota. Levantaste-te cheio de calma, ainda que fosse uma calma auto-imposta, e sacudiste a areia das calças. Voltaste as costas ao ponto mais claro do céu, onde o sol ia nascer, trepando pelas ondas, e dirigiste-te devagarinho para uma esplanada. O café ainda estava fechado, mas tu não te importavas de esperar. Sentaste-te numa cadeira verde de plástico, sem te preocupares com a humidade da noite que se acumulara no assento, e puxaste de uma folha de papel do bolso interior do teu casaco de camurça. Procuraste a caneta e quando a encontraste começaste a escrever uma carta. A folha colava-se à mesa meio molhada, mas estavas tão concentrado nas palavras que nem notaste. Era uma carta do teu eu para ti. Como se te dividisses em dois e isso te tornasse mais completo. Também não te apercebeste do aumento gradual da intensidade da luz que incidia nas tuas palavras escritas avidamente e só ao pousares a caneta é que viste que já era de dia.
Tal como a carta, também tu estavas pronto. Não para começar de novo, mas para continuar de forma diferente. O que ficava para trás continuava a ser importante mas o que tinhas pela frente, ou o que podias fazer disso, prometia ser muito melhor.
Levantaste-te da cadeira, ainda com o café fechado, e andaste muito depressa, quase a correr, até casa. Entraste no teu quarto, descalçaste-te e despiste o casaco. Mas em vez de te deitares para tentar dormir, foste até à cozinha fazer o pequeno-almoço. Estavas mais acordado do que nunca. O que escreveste não importa. Afinal, era só para ti. Mas sei que no final do dia, quando finalmente te deitaste, dormiste o melhor sono da tua vida, desde criança. Sem qualquer lembrança de insónias.

quinta-feira, 30 de março de 2006

Always late.

- Tudo por causa de certas e determinadas pessoas que chegam sempre atrasadas. Não é, minha menina?

- Quem me dera ser certa e determinada. Mas a verdade é que a incerteza e a hesitação reinam sobre mim. É por hesitar tanto que chego atrasada. Peço desculpa!

- Erm...

- Yah, eu sei. Não é todos os dias que se leva com uma resposta destas. Beware! As respostas inesperadas esperam-nos a cada esquina. Nunca se sabe quando se vai levar com uma.

- Pois...

- Nevermind. I rule. Though I'm always late.

sexta-feira, 24 de março de 2006

Sou bué da estóica, disse eu um dia.

- Olá. Tenho muitos nomes, sabes? Hoje chamo-me Lídia. Sou a Lídia. Sou uma pagã triste, de flores no regaço. Triste porque nunca tive coragem de enlaçar a minha mão na tua. Que é como quem diz que nunca te convidei para tomar café. Achei que cedo a libertarias. Que não ias gostar da pressão dos meus dedos nos teus. Que dirias que não. Achei que custava menos ficar a ver a vida a passar. Como um comboio reservado do Metropolitano de Lisboa. Afinal e de facto, não é profissão para mim. E, na verdade, também não é o meu nome do meio. Aliás, digo-te mesmo. Merda para o estoicismo.

quinta-feira, 23 de março de 2006

Dias chuvosos

Porque será que nos dias em que choro não posso sair à rua sem levar com uma chuva de piropos? É ridículo. Vai uma pessoa a sentir-se miserável e ainda tem de ouvir baboseiras daquelas. Não há direito! Será uma tentativa do Universo para me fazer sentir melhor? Lamento, mas se era essa a intenção, não dá lá grande resultado. Antes pelo contrário. Ainda me consegue deixar mais mal-disposta.
E quando estou naquele dark mood em que só me apetece ficar em casa enrolada no sofá, debaixo de uma manta, a ver filmes lindos e deprimentes, mas faço um esforço e vou sair para ver pessoas e me dizem Estás tão bonita hoje!! Não é que duvide da visão das pessoas, mas quando me sinto tão na merda, custa-me a acreditar. Daí que a resposta seja um Obrigada!... sumido e um sorriso amarelo. Não é timidez nem modéstia. É só descrença.
Isto tudo leva-me a chegar a uma conclusão. Porque depois de alguns anos de meditação sobre o assunto, cheguei sempre à mesma conclusão, é verdade. Talvez seja uma predisposição humana para achar bonito o que é triste. De ver beleza na melancolia. Se calhar a Maria Madalena nem era tão bonita quanto se pensa. Mas a vida infeliz dela pode ter-lhe conferido aquela aura de beldade tétrica. Assim uma mistura de sangue, lágrimas e beleza, em que umas se confundem com as outras. De outra forma não faz sentido acharmos um rosto contorcido, vermelho, inchado, de olhos, nariz e boca molhados de lágrimas, ranho e baba, belo em vez de grotesco.

segunda-feira, 20 de março de 2006

A História do Cão Azul


Era um cão com cara de gato. Tinha bigodes compridos e tudo. O pêlo cinzento, por vezes, parecia azul, talvez por causa da luz, o que fazia com que parecesse um cão de outro planeta. Isso e os olhos, que pareciam olhos de pessoa e faziam as pessoas que para lá olhavam arrepiar-se. Era um cão que ladrava como quem ri, uivava como quem chora e usava a cauda em forma de ponto de interrogação. Era um cão pançudo, que gostava de se espreguiçar ao sol, como um gato. Era um cão semeado; aparecia em todo o lado.
Para além das crianças, que achavam que ele era um extraterrestre, havia mais quem tivesse as suas teorias sobre o cão azul. Uns diziam que era um fantasma e assombrava as ruas. Outros achavam que era um demónio e dava azar a quem o visse. Outros ainda, diziam que dava sorte, porque era uma espécie de criatura mágica. Havia também quem dissesse que o cão era um anjo da guarda, um enviado dos céus para combater os maus e proteger os bons. Por último, pelo menos que se saiba, havia a teoria de que era uma pessoa reincarnada, por causa dos olhos. Nada de novo, portanto. Claro que no meio disto tudo, quem estava mais perto da verdade eram as crianças. Como sempre, aliás. Afinal, era um cão que se portava como quem não sabia nada e estava a descobrir tudo pela primeira vez. E pela forma como investigava minuciosamente todos os recantos, enfiando o seu nariz húmido e rosado, como os dos gatos, em todos os lugares onde conseguia chegar; bem que podia ter sido enviado de uma estrela distante para estudar o planeta Terra.
Era um cão que gostava de brincar. E que comia flores. Era um cão especial porque não tinha dono. Era livre e era selvagem como um lobo, mas era meigo como um gato de estimação. Era um cão que gostava de lamber as mãos às crianças e tinha uma língua áspera como as dos gatos, que fazia cócegas.
Andava uma noite a brincar com um pirilampo. Uma luzinha pequenina e amarela que piscava e brilhava no meio da escuridão. O cão ouvia o seu riso pequenino e achava que era uma fada. Porque até os cães sabem fantasiar. Pelo menos aquele sabia. Tentava tocar na luzinha com a sua pata azul, levantando-a à altura do seu focinho pontiagudo, como fazem os gatos quando brincam. Mas a luzinha do pirilampo era tão pequenina, tão pequenina, que o carro vermelho não a viu. E na manhã seguinte, a rua ficou mais triste, porque o pêlo fofo do cão era apenas cinzento. Tinha-se acabado o azul. E a língua áspera pendia-lhe inerte por entre os dentes afiados que costumavam morder as flores. Sem vida. Sem azul.

segunda-feira, 13 de março de 2006

Ser ou não ser?

Nunca fui capaz de definir muito bem se sou uma optimista ou uma pessimista. Há muito tempo que sou fiel ao princípio de esperar sempre o melhor estando preparada para o pior. Lá está! A tal história do hipotético e do relativo. Ou não tivesse este blogue o título que tem! Nunca se sabe. Prefiro concentrar-me em encontrar as perguntas certas que em procurar respostas. Acho que as respostas é que, mais tarde ou mais cedo, acabam por me encontrar a mim. Mas para as compreender tenho de estar preparada para elas. E que melhor forma de estar preparada para o abalo das respostas do que tendo as questões possíveis já imaginadas? Assim talvez não precise de me sentar, e respirar fundo seja o suficiente. Este é um dos motivos porque o Shakespeare e o Sérgio Godinho são importantes para mim. (*)

Hoje apercebi-me de uma coisa. E é tão óbvio, tão óbvio, que me senti estúpida por só agora ter dado forma a esta ideia, ou sentimento, ou seja lá o que puder ser. Tudo junto, se calhar. Às vezes ponho-me a sofrer por antecipação. Pronto, muitas vezes. Mas a verdade é que não é por estar preparada para o pior que se o pior acontecer vai doer menos. Talvez até, por acumulação, doa mais. Acaba por ser tudo um pouco inútil. Só vale a pena prever o pior se fizer alguma coisa para o impedir. E se estiver fora do meu alcance, se for algo de inevitável, caso se concretize, há tempo de sobra para lamentá-lo.
Enquanto só existe a dúvida, o melhor é ser feliz, antes que chegue a certeza. Senão nunca podia sorrir.

E neste momento, apesar de ter medo do que possa vir aí, e porque se trata de uma daquelas hipóteses que me deixam impotente, de mãos atadas contra a vida, não posso deixar de sorrir. Porque a esperança é maior do que tudo. E porque se calhar ninguém acredita tanto como eu. Que vai correr tudo bem. Ou talvez seja apenas ingenuidade minha. Infantilidade até. Mas a verdade é que enquanto os vejo todos de rosto fechado e olhos húmidos (porque é que ninguém fala?), vejo-me a mim no meio, de sorriso nos lábios, voz alegre e palavras leves, e sinto-me ridícula. Porque também tenho o coração apertado e vontade de chorar. Provavelmente julgam-me insensível, indiferente, ou pior, julgam-me tola. Mas não me importo, porque se calhar assim não lhes peso no coração.




(*)

Ser ou não ser gente
ter ou não ter sonhos
mais exactamente
vir
à tona dos sonhos
Ter sempre a certeza das dúvidas
por via das dúvidas saber o que achar
(...)

Ser ou não ser, Sérgio Godinho



To be, or not to be: that is the question
[...]to die to sleep!
To sleep, perchance to dream, ay there's the rub,
For in that sleep of death what dreams may come

Hamlet, William Shakespeare

sexta-feira, 10 de março de 2006

Ando a ouvir vozes!

É o mundo inteiro que me grita que saia! Que vá viajar! Que me faz querer alargar os horizontes!
Tenho recebido sinais claros e óbvios. O Universo anda a enviar-me mensagens explícitas. Primeiro foi quando vi A Residência Espanhola. Como dizer? Era, claramente, uma indirecta para eu ir de Erasmus e tornar-me escritora. Faz sentido. Às tantas podia viver uma aventura marada que desse um livro. Se bem que o verdadeiro artista é aquele que cria algo de belo que não tenha nada de autobiográfico. Como o Oscar Wilde. Mas para isso acho que ainda tenho de crescer mais um bocadito. Ainda sou demasiado egocêntrica para não escrever sobre mim. Ainda estou demasiado fascinada pela própria vivência.
Mas como eu ia dizendo, os sinais cósmicos. Depois do filme, foi a despedida no aeroporto. Fui dizer até daqui a uns meses aos três demónios que foram de Erasmus para Siena, Itália. Que vontade de ir com elas! Foi aí que comecei a decidir, assim à doida, ir também à aventura. E depois também havia os outros três caramelos que foram para Torino. E a M.J. a contar-me as maluqueiras da Bélgica, no semestre passado. E o John a dizer que vai para a Finlândia.
E depois outro filme. Ou melhor, outros dois. Vi o Before Sunrise e o Before Sunset seguidinhos, assim de shot, e foi a gota de água. O romantismo é aquela cena, não consigo resistir! E ainda por cima o Jesse também escreve um livro! Já começam a ser demasiados iscos para eu não morder nenhum. E agora é o meu caloiro que vai passear a NYC com a Ju, os dois assim à parvalhão! A inveja é um sentimento muito feio, yo, mas eu nunca fui uma menina bonita, ye.
Erasmus. Parece-me bem. Acima de tudo é preciso reunir coragem para ficar longe durante cinco ou seis meses. Basta não dar parte de fraca e eu sou perita em armar-me em forte! É isso. Está decidido! Quase decidido, que isto do definitivo não combina muito comigo. Eu sou mais da equipa do hipotético e do relativo. Mas é bom fazer planos! Siga lá!


Um forte abraço aos aventureiros intrépidos que estão ausentes,
e uma palmadinha nas costas aos que, como eu, o pretendem ser também.

Aos restantes, as minhas saudações amigáveis.
Até breve! ;)



P.S. - Qual semestre! Vou um ano!!
P.P.S. - Alemanhaaaaaaa!

sexta-feira, 3 de março de 2006

A pensar morreu um burro.

E de repente, nasce-me uma vontade de fazer tudo!
De ouvir todas as músicas que há para ouvir, de ler todos os livros que há para ler, de ver todos os filmes que há para ver. De tirar fotografias a tudo e a todos para nunca me esquecer de nada nem de ninguém. De escrever todas as palavras, todas as ideias, para não deixar fugir nenhuma. De gravar todos os risos e todas as vozes à minha volta porque são tão bonitos e queria poder ouvi-los sempre.

E olho em meu redor.

Estou num quarto onde reina o caos e a confusão porque nunca tenho tempo de o arrumar. Proliferam os cadernos vazios e ainda a cheirar a novo em que nunca tive tempo de escrever. Tenho um livro na secretária, à espera que eu lhe volte a pegar. Já está à espera há quase um mês. E tantos outros na prateleira à espera de vez. Tenho um computador cheio de músicas que nunca ouvi e tão cedo não vou ouvir. Porque não tenho tempo. Tenho molduras vazias porque nunca tive tempo de as encher de fotografias. Na rua, lá em baixo, aqui ao lado, tenho um clube de vídeo do qual nunca me fiz sócia. E tive tanto tempo...

Estava sentada no sofá a pensar. Só a pensar. O cérebro fervilha-me de ideias, desejos, recordações. De palavras. E deixo-me estar assim, a pensar. A vida toda assim. Desde sempre ou há mais tempo do que me consigo lembrar.
Penso demais. Às vezes dou por mim a pensar que penso demais.
Vou sair para comprar mais um livro! E penso pelo caminho.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

Warning!

Ficção, nua e crua.
Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Tirando uma coisita ou outra.

Saudações muito sérias e muito sóbrias, como deve ser.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Das cinzas.

Ainda me lembro do dia em que te conheci. Eras igualzinho ao que és hoje! É engraçado como temos a sensação de que a maior parte das pessoas não muda nada e olhamos para nós e achamo-nos tão diferentes daquilo que fomos. Abismalmente.
Mas voltemos ao dia em que te conheci. Alguns segundos (ou minutos, talvez, sei lá) depois de te teres sentado na nossa mesa dei por mim a pensar: Era capaz de me apaixonar por este gajo. Palavra por palavra. Juro. Lembro-me como se tivesse sido na semana passada. Ou melhor ainda. E já passaram anos. Acreditei naquele momento que era possível, provável até, apaixonar-me por ti. E assim foi. Passados uns meses, era impossível negar. Estava perdidamente apaixonada. E ainda hoje tu não sabes! Não fazes ideia. A não ser que algum fala-barato se tenha descosido. Mas acho que não. Foi uma paixão declaradamente secreta. Porque foi na mesma altura em que conheceste a mulher da tua vida. E não era eu.
O mais divertido é que simpatizei com ela! Era incapaz de odiar. Ainda sou. Bem sei que o poeta tem razão quando diz Que o ódio, infelizmente,/quando o clima é de horror,/é forma inteligente/de se morrer de amor.(*) Mas nestas coisas fui sempre um bocado estúpida. Tão esperta para umas coisas, tão burra para outras. Amar até à morte tudo bem, amar até ao ódio é que não. E talvez o meu amor não fosse assim tão grande. É que não cheguei a morrer. Limitei-me a renascer numa nova paixão. Mais forte ainda, confesso. Mas não fiques triste, as circunstâncias eram totalmente diferentes. E assim provei, sem deixar lugar para dúvidas, que se pode renascer sem se ter morrido antes. Parece parvo, mas faz todo o sentido.
E como gosto de ti, faço-te presente de um segredo. Quando se ama alguém de verdade, esse amor nunca chega a morrer. Só adormece. Cuidadinho, porque pode despertar a qualquer instante. É daquelas coisas inesperadas. E não me olhes assim, por favor. Fazes-me frio.


(*) António Gedeão, Amor sem tréguas

domingo, 12 de fevereiro de 2006

Certas pessoas

Sentia que carregava o peso do mundo sobre os ombros. Há pessoas assim. Parece exagero, eu sei. Mas é uma hipérbole bonita.
Preferia sofrer por si, numa divisão mal iluminada, que ver os outros sofrer. Ou que fazer sofrer os outros. Parecia-lhe que o seu era um sofrimento menor. Menos importante. Ou então achava-se mais capaz de lidar com a dor que qualquer outra pessoa no mundo. Não sei. Talvez fosse hábito. Mas não, é impossível alguém habituar-se a sofrer. Seria demasiado triste. Como se tomasse analgésicos para a vida. Ninguém deve estar assim tão anestesiado. Talvez seja preferível sofrer vezes sem conta como se fosse sempre a primeira. Como se todas as dores fossem uma dor nova. Porque são. Mesmo que lhe sejam familiares.
Era aquele sentimento de responsabilidade e aquela necessidade de proteger que motivavam as suas escolhas. Ou talvez não fosse tudo altruísmo. Talvez a dor se transformasse no seu vício. Um vício privado e oculto, quem sabe se até de si mesmo. Mas prefiro pensar que era altruísmo aquela apetência pelo sofrimento. Nada de masoquismos. Apenas um coração demasiado grande para caber no peito, intacto. E talvez fosse por isso que sonhava todas as noites com ataques de tosse violenta que lhe faziam cuspir aos poucos os pedaços sangrentos do seu coração despedaçado. Sonho sanguinolento mas com o seu quê de poético. E nem uma gota de desespero maculava a poça vermelha que se formava todas as noites a seus pés. Em sonhos. Somente uma resignação adocicada que não confundia com conformismo. Resignava-se a esperar. Era o que bastava. Porque enquanto lhe pulsassem as veias, ressoar-lhe-ia nos ouvidos a esperança. Esperança de que um dia não lhe fosse dado a escolher entre o sofrimento de ninguém. E que a felicidade pudesse ser repartida. Sem nenhuma espécie de desiquilíbrio. Que o sangue da balança coagulasse e fosse limpo. Que a balança não fosse mais precisa. Que finalmente o mundo entrasse nos eixos e deixasse de lhe pesar nos ombros. E que acabassem as lágrimas, sem terem necessariamente de secar.
Há pessoas assim...

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

É mais fácil acreditar no incrível!

Uma vez conheci um rapaz que me contou que numa noite, depois de o namoro dele com uma certa rapariga ter terminado, lhe deu uma pancada enorme e saiu de casa a correr, só de boxers e descalço, para ir ter a casa dela e dizer-lhe que a amava. Ou para lhe pedir perdão por qualquer motivo. Já não sei bem. Lamento não ter registado os factos com precisão. Também não tenho a certeza se ela voltou para ele, mas acho que não. E não se preocupem que não estou a cometer nenhuma indiscrição ao contar-vos isto. Na altura perguntei-lhe se podia incluir a história dele numa história das minhas, se um dia escrevesse um livro. Ele mal me conhecia e provavelmente já nem se lembra, mas na altura respondeu-me que se sentiria lisonjeado, ou honrado, ou algo parecido; como disse, já não sei precisar e também não vos quero enganar. Está bem que isto não é nenhum livro, nem estou a contar nenhuma história, mas acho que ele não se ia importar. Caso contrário, apresento desde já as minhas sinceras desculpas.
Mas onde eu queria chegar com isto tudo, antes de me dispersar, era ao facto de eu ter acreditado nele sem sequer pestanejar. Claro que perguntei: A sério?!, mas não cheguei a duvidar.
E há pouco mais de uma semana, no Domingo, dia 29 de Janeiro, tinha eu adormecido há cerca de uma hora, depois de uma directa, quando a minha mãe me veio acordar porque estava a nevar. E eu levantei-me num ápice e fui a correr para a janela. É engraçado como nem sequer estranhei que nevasse aqui, onde nunca tinha nevado desde que eu sou viva!
Mas quando uma vez deixei cair um frasco de maionese no chão da cozinha e fiquei com uma área de um metro e meio em meu redor coberta de molho misturado com vidros, deixei-me estar com ar de estúpida a olhar para baixo, sem outra reacção a não ser a de dizer em voz alta: Isto não me está a acontecer! Não estou a acreditar! E não estava mesmo. Demorei um bocadito a encarar a realidade e a começar a limpar aquela porcaria.
E nunca vos aconteceu contarem-vos uma grande mentira e quando começam a desconfiar que não é verdade entram em negação, rejeitam a hipótese de que alguém possa ser desonesto convosco, até ser demasiado óbvio e já não poderem negar mais? O mesmo quando um amigo ou alguém de quem gostam muito e que têm a certeza que também gosta muito de vocês (mesmo que já tenham tido atritos no passado) faz algo que vos magoa. Que vos magoa assim mesmo muito. De rasgar o coração. Quer tenha sido de propósito ou não. É que às vezes temos vontade de magoar as pessoas de quem gostamos; outras vezes não temos a intenção mas magoamos na mesma; outras ainda, nem sequer pensamos, nem sequer nos lembramos que podemos estar a magoar alguém. O último caso acaba por ser o mais cruel. Estúpida falta de cuidado! Egoísmo crónico a que estamos destinados. E insensíveis que somos às vezes...
(Podia dar mais exemplos para reforçar a teoria, mas como não vos quero abusar da paciência, salto já para os finalmentes.)
A conclusão a que chego, no fim ou no meio disto tudo, está no título. É tão mais fácil acreditar no incrível, no ináudito, no impensável, que no mais normal, mais natural que pode existir! Porque será? Ah! Mistérios insondáveis da natureza humana! Conseguem ser tão ridículos às vezes...

domingo, 5 de fevereiro de 2006

Quando a noite perde o rosto.

Quantos de nós podem dizer, sem mentir, que não gostam de olhar o céu à noite? Muito poucos, calculo. É que também há muito poucas coisas mais bonitas que a lua, seja em que fase for, ou que as estrelas.
Por vezes, pode acontecer que ao olhar o céu se veja mais do que astros brilhantes. Não me refiro a ovnis, refiro-me a um rosto. Não é um rosto qualquer mas também não é um rosto específico. Depende de quem o vê! É simplesmente o rosto de alguém que conhecemos em tempos, de alguém que amámos. Talvez tenhamos conhecido essa pessoa numa noite estrelada, talvez passassemos horas a rir ao relento, debaixo do céu, ou talvez tivesse o brilho das estrelas nos olhos e o seu sorriso fosse acariciante como o luar. Seja porque for. A verdade é que as estrelas mudam. Ganham um novo significado. E depois, numa noite qualquer, estamos sozinhos e decidimos ir até à varanda ver se está frio, ou até à janela fumar um cigarro, ou saímos para tomar café, ou dá-nos apenas vontade de olhar as estrelas. E aquela verdade atinge-nos como um raio. Mesmo que esteja bom tempo. Especialmente se estiver bom tempo! Apercebemo-nos, num misto de medo e deslumbramento, que já não olhamos apenas as estrelas, nem apenas a lua. Aquele rosto está lá. No firmamento e para além dele. No nosso coração, onde também é noite e a lua está cheia. É então que começamos a olhar para cima de maneira diferente. À sucapa, com um sorriso disfarçado, como se nos rissemos de uma piada que mais ninguém percebeu, porque sentimos vontade de beijar as estrelas e essa ideia nos parece bela e ridícula em simultâneo.

Mas o tempo passa. Coisas acontecem. Como sempre. Surgem as incertezas e as lágrimas. Nada é como antes. Decidimos esquecer. Porque já chega e é pelo melhor. Seja lá isso o que for. Tentamos esquecer. Mas as estrelas estão lá sempre para nos recordar. A lua ri-se de nós. O céu permanece no mesmo lugar. Em todo o lado. É impossível fugir-lhe.
Até que um dia, sem aviso prévio e completamente de surpresa, damos connosco a olhar para cima mais uma vez. É noite. As estrelas estão lá. A lua está lá. Até as nuvens vêm acrescentar farrapos de beleza ao cenário. É lindo de ver. E não acontece nada. O coração não salta, não ri, não dói. Nada. A ferida sarou. O rosto desapareceu. Já não está nas estrelas, ficou apenas na memória. Num lugar especial, é certo. Mas do passado. E sentimos um alívio imenso, misturado com aquela nostalgia que não é mais que os restos mortais de um grande amor. Naquele momento entendemos. Estamos preparados para seguir em frente. Acabou o luto.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

Desvenda-lhe o lado lunar!

Ela não saberia dizer ao certo o que primeiro a atraíra. Talvez aquele jeito meio brincalhão de dançar, sem olhar de frente para ninguém em especial. Ou o arzinho tímido de quem se vê em território desconhecido. Ou o facto de as suas tentativas de lhe encontrar o olhar saírem frustradas. Não era costume. Deu por si a seguir-lhe os movimentos irritadamente, persistentemente. Sem qualquer resultado. Adoptou a táctica de ser fixe para as pessoas em redor. Para ele ver como ela podia ser divertida. Se conseguia cativar toda a gente com as suas gargalhadas sinceras, porque não a ele também?

Durante muito tempo tentou captá-lo. A partir de quase nada, ou mesmo de coisa nenhuma, imaginou-o. Riso cómico e característico, fácil e contagiante. Olhos tristes e um pouco parados. O que via só ele sabe. Indícios de uma vida melancólica - como o seu carácter - e de traumas passados e secretos. Mas sempre divertido. De todas as vezes que o via tinha vontade de lhe abraçar aquele lado mais escuro. De lhe beijar aquela sombra do olhar. De lhe conhecer os segredos.
Que injustiça! Ele conseguia ter para si o mistério que ela desejava desde sempre. Talvez mesmo porque nem se apercebia disso. A pobre perguntava-se no meio da sua solidão rodeada de gente se seria apenas ela a reparar. E no momento a seguir envergonhava-se da sua pretensão. Aos poucos, foi perdendo a coragem de o observar. Apagava-se junto dele, com medo de que o calor que lhe emanava do peito embaciasse os vidros das janelas. Aproveitava todos os momentos em que podia apenas fechar os olhos e respirar a presença dele. Em que podia estar de costas, sabendo que ele estava a poucos metros; desafiando-se a si mesma a adivinhar que espaço preciso é que ele ocupava.

Desde pequenina que tinha curiosidade em saber como seria. Uma paixão platónica! Como nas histórias. Agora que sabia, dizia para si mesma todas as noites ao deitar:
Às urtigas, o Amor!!!

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Quando a rosa descobre que é uma máquina de guerra.

Existem três tipos de rosas. Mas não é pela cor que se distinguem.
Enquanto são ainda pequenos botões não se preocupam com mais nada a não ser aprontarem-se para desabrochar. Para saírem perfeitas. Não que sejam vaidosas, como muitos julgam; apenas gostam de agradar. Quando abrem pela primeira vez as pétalas ao sol, o deslumbramento é tal que ficam petrificadas, em contemplação, até que descubram o vento.
Muitas rosas permanecem neste estado puro até ao fim. Dedicam os seus dias a sentir o calor do sol nas pétalas, a escutar os murmúrios do vento e a sentir as suas carícias por entre as folhas que estendem de prazer. Embriagadas na fotossíntese. Completamente alheadas de si mesmas. Alegres e despreocupadas, sorrindo ao mundo. São as rosas inocentes.
Depois há as rosas que passam os dias com medo dos insectos e os ameaçam constantemente com os seus pequenos espinhos afiados, convencidas de que estes bastarão para as defender de tudo e de todos (como a rosa do Princípezinho...). Conversam com as irmãs, queixando-se do perigo das lagartas e do assédio das abelhas. São as rosas ingénuas e palermas.
Mas há ainda um terceiro tipo de rosa. A rosa que um dia, não se sabe muito bem como nem porquê, descobre toda a dimensão da sua beleza. E apercebe-se de que esta é a arma mais poderosa de todas. Infinitamente mais devastadora que uns simples espinhos. Dedica-se então a coleccionar corações. Colecção sangrenta a sua, direis. Mas ela não o faz por mal. Em si não há lugar para a maldade. Fá-lo apenas porque lhe dá prazer. E porque sabe que pode. Simplesmente cumpre o seu destino. Se um transeunte incauto passa por ela, lança-lhe o seu perfume arrebatador, que o entontece. Se ele pára para a admirar, inclina-se suavemente na sua direcção, usando a brisa como pretexto para o seu desiquilíbrio momentâneo. Se ele lhe toca, pica-o com doçura, inebriada pelo sangue quente que a inunda e tanto a excita. Se vê que ele repara nos pequenos cortes que lhe marcam o tronco, ri-se para dentro porque sabe que ele pensará que se tratam das sequelas deixadas por alguma faca ou tesoura, ao colher uma das sua irmãs. E quando finalmente ele se afasta - por saber que a levará no pensamento, que será a causa da sua perturbação, que aquele coração lhe pertence para sempre, para uma eternidade maior que algumas vidas - utiliza rejubilante o próprio espinho para rasgar a sua carne de flor, num ritual de automutilação que lhe permite actualizar o inventário da sua colecção. E espera que passe mais alguém. Estas são as rosas perigosas. E as que mais vale a pena conhecer.
Se amanhã passardes por um jardim, acautelai-vos. Agora conheceis os riscos. Se quereis conservar o coração livre, afastai-vos das roseiras. Se não vos importais e quereis sentir na pele a doce mordedura de uma rosa, ide e aspirai o seu perfume. Se, como o meu, o vosso coração já pertence a alguma rosa, então não preciso dizer mais nada. Sabeis do que falo.

Se estavas tão seguro disso, porque não disseste antes?

Malditas palavras por dizer! As tuas e as minhas... Era tudo tão mais fácil se simplesmente fossemos sinceros e o dissessemos de uma vez. O que sentimos realmente, pois. Porque teimamos em pensar que seria mais difícil? Estupidez propositada. Que é como quem diz um medo que chega a ser terror. Tremem as mãos, empalidece o rosto, fraquejam os joelhos. Pára o pulmão e dispara o coração! Impossível pensar. Só depois. Quando já é tarde, claro. Mas porque é que tem de ser tarde, alguma vez? Quem é que decide quando é cedo, ou quando é tarde, ou quando chegou a altura certa? Raios, a altura certa é imprevisível! Não podemos sabê-la antes que chegue. Se damos com ela é por acaso. Significará isto que devemos agir o maior número de vezes possível, para que a probabilidade de atingir alguma vez o momento certo seja maior? Mas assim também aumenta o número de vezes que podemos falhar! Que somos inconvenientes. A questão é que os sentimentos nunca deviam ser inconvenientes. Mas às vezes são. Problema insolúvel!
A intuição. Deve ser a intuição que nos guia nestas coisas. Deve haver uma vozinha que diz: "Agora!! Ready...Set...Go!!". Pelo menos já me têm dito para me deixar guiar pela intuição. Ora bolas, como é que eu vou saber que tenho disso? Não há cá vozinha nenhuma! E se houvesse era capaz de ficar preocupada. Se fosse mesmo verdade que todos temos intuição (especialmente as mulheres, segundo dizem) e que esta é o melhor guia que se pode ter, então devia correr tudo bem! Não devia haver problemas nem dúvidas. Era só seguir a intuição! Pois claro.
Talvez o melhor fosse termos uma espécie de reflexo involuntário. Do estilo, quando fosse preciso dizer alguma coisa, mas alguma coisa importante (nada do estilo eu dizer agora que há pouco espirrei para cima do monitor, o que por acaso até é mentira), quando precisassemos de dizer alguma coisa importante a alguém, não seria necessário nenhum esforço sobrehumano, as palavras sairiam naturalmente, fluidas e livres, sem ser preciso pensar. Não haveria aquele dilema medonho do digo-ou-não-digo. Dizer o que sentimos deveria ser como fechar os olhos ao espirrar.
Como na realidade as coisas não funcionam nada assim, a solução ideal era, mesmo sem o tal reflexo involuntário, dizermos aquilo que sentimos à pessoa em questão, deliberadamente e sem medo, na primeira oportunidade. E pronto. Assunto arrumado. Está dito, está dito. Depois logo se vê!
E penso eu que pensam vocês: "Pois sim, minha amiga, falar é fácil!..." Mas não. Tenho estado a dizer precisamente o contrário. É fácil uma merda!

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

Mais uma!

Lá teve de ser. Depois de dois anos e meio de resistência, acabei por me decidir, assim, na loucura, a criar o meu próprio blog. "O meu próprio blog". Note-se a altivez com que digo isto. Se conseguisse até levantava ligeiramente uma das sobrancelhas mas para minha grande infelicidade esse é um dos muitos talentos que não tenho o privilégio de possuir. Por aqui só se arranja mesmo um certo ar de enjoada.
E pronto, agora que já escrevi meia dúzia (e é que foi mesmo) de frases idiotas que não terão outro efeito a não ser o de afugentar possíveis leitores, apresento-me. Ou se calhar é melhor não. Pois, esqueçam. Não quero desatar já assim a dar confianças em demasia. Prefiro uma aproximação suave, subtil, como quem não quer a coisa. Logo de chofre não tinha piada nenhuma. Não que tenha de outra maneira, mas enfim.
Acho que para primeiro post já chega, já me humilhei o suficiente. Ah, calma. Era suposto dar uma ideia do que vou escrever por aqui, certo? Pois, o problema é que não sei. Logo se vê. O que me der na real gana. Afinal de contas, é o meu blog, e no meu blog, escrevo o que eu quiser. Isto era a minha pessoa a marcar território, não que fosse preciso, mas porque me apeteceu. E claro, ainda me estou a habituar à ideia. Acho que vou dizer "meu blog" quinhentas vezes, ou até me fartar, o que deverá ser por estas alturas.
Não chateio mais. Por agora. :)
Saudações esfuziantes!