quinta-feira, 16 de outubro de 2008

História de-gelo.

Eles desejavam-se mutuamente, mas ambos ignoravam o facto de o seu desejo ser correspondido. Então, ignoraram-se reciprocamente na esperança de se tornar objecto de desejo do outro, em profunda ignorância da simetria táctica. Cada vez mais distantes, deixaram apagar o desejo, sedados na frustração do fracasso sedutivo. Um dia caminhavam na baixa de Lisboa, em direcções contrárias, e ao cruzarem-se reconheceram a presença um do outro, trocando um frio acenar de cabeça. Quando digo frio, quero dizer gélido, sibérico, congelante. Tanto que o chão que pisavam começou verdadeiramente a gelar, a uma velocidade estonteante, dezenas de metros em redor. Aterrorizados, olharam em volta. Entre eles, abria-se uma fissura no gelo, com um ruído ensurdecedor. Os estalidos secos do gelo troavam-lhes nos ouvidos. Olharam um para o outro, ainda cheios de terror, e apercebendo-se da sua culpa começaram a rir. As gargalhadas ganhavam um tom cristalino no ar gelado e ecoavam até longe. À medida que eles iam rindo, o gelo começou a derreter. Eles agarravam-se às barrigas, rindo sem parar, e o gelo derretia. As pedras da calçada, a terra e o alcatrão transformavam-se em água. E Lisboa era Veneza, com canais em lugar de ruas. Sempre a rir, eles nadaram até às portas dos Armazéns do Chiado, onde a água acabava, e treparam a margem de alcatrão seco. Subiram a rua e sentaram-se nas escadas da Basílica dos Mártires, recuperando o fôlego. Ali se espraiaram, deixando as roupas secar ao sol, como náufragos.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Uma história com moral.

Eu tinha ido ao supermercado com o meu pai, fazer umas compras rápidas para o lanche. Tínhamos acabado de entrar quando por qualquer motivo eu olhei para trás e vi uma senhora de rosto verde, ombros tortos e com um ligeiro coxear. Morta de riso, puxei o meu pai para um dos corredores laterais e, com dificuldade, pelo meio das minhas pequenas gargalhadas nervosas e compulsivas, informei-o:
- Pai, acabei de ver um zombie a andar na nossa direcção. A sério!
E fechei os olhos, para dar mais uma gargalhada. Quando os abri vi com enorme espanto e terror que o meu pai já não estava à minha frente mas entendido no chão, de crânio aberto e vazio. A senhora zombie estava a centímetros de mim, e eu ainda disse:
- Os zombies não existem.
Mas mesmo assim ela comeu o meu cérebro.
É isto que acontece aos meninos e meninas que gozam com as pessoas no supermercado, na rua, na escola e noutros lugares.

P.S. – Come a fruta e os legumes até ao fim, porque o papão não existe mas o cancro sim.

domingo, 12 de outubro de 2008

História do abre-cartas.

Era a inauguração de uma galeria de arte, e as minhas amigas tinham-me dito que a lista de convidados estava repleta não exactamente de jet-sets desenxabidos mas de artistas da moda, pelo que merecia ir vestida para inspirar. Escolhi um vestido de veludo azul, digno de uma diva, ou melhor, de uma musa, e enquanto moldava com alguma dificuldade o cabelo em caracóis largos e aplicava a minha arte nas pinturas do rosto, fui bebendo um copo ou outro de um whisky novo oferecido por um velho ex-namorado. Lembrei-me da primeira vez que tinha provado whisky e perguntei-me como teria sido capaz de repetir a experiência. Tinha quinze anos e a coca-cola tinha acabado; também não havia gelo, pelo que me juntaram água no copo para diluir a bebida. Devo ter dado no máximo dois goles, depois do que despejei a bebida na sanita e vomitei o resto. Voltei a sair da casa de banho com um grande sorriso e o copo vazio, mas por momentos tinha acreditado que ia morrer no chão de azulejos brancos. Agora tinha bebido um terço da garrafa e ainda não me sentia alcoolizada o suficiente para aguentar a noite de sorriso nos lábios. Ainda não estavam assim tão dormentes. Apanhei um táxi e encontrei as minhas amigas à porta da galeria. Entrámos juntas e elas reuniram-se num grupinho, rindo e conversando, enquanto metralhavam olhares sedutores em redor. Eu estava de péssimo humor e tinha a boca seca, pelo que me dirigi imediatamente ao bar. Era o que este tipo de eventos tinha de bom. Pedi um whisky, para continuar no ritmo, mas desta vez dos bons. Dos mais ou menos, que era o que havia. Enquanto observava os movimentos do barman, o homem ao meu lado começou a conversar comigo. Da boca dele saiam apenas banalidades entrecortadas de lisonjas. Uma óbvia e pouco imaginativa tentativa de engate. As minhas respostas mordazes e semi-provocativas surtiram o efeito habitual e ele continuou a falar entusiasticamente. Tinha um aspecto bastante atraente e era nítido que estava habituado a ter sucesso com as mulheres. Ponderei deixar-me seduzir. Seria uma companhia agradável para aquela noite. Voltei para junto das minhas amigas que imediatamente me informaram que o homem com quem tinha estado a falar era um jovem empresário do ramo imobiliário que tinha já seduzido duas delas com promessas de amor profundo e verdadeiro, promessas tão curtas quanto o tempo que tinha passado com elas na cama. Alertaram-me para não cometer o mesmo erro e eu assenti. Claro que não me deixaria levar por promessas, visto que ele queria precisamente o mesmo que eu. Nessa noite deixei-me levar para casa dele, sorrindo muito sempre que ele dizia alguma coisa mais romântica. O meu tédio era profundo. Estava a passar uma fase de brutal desencanto e sustentava-me a álcool e anti-depressivos. Sempre fora fã da auto-medicação. Na manhã seguinte vesti-me enquanto ele ainda dormia e apenas por consideração o acordei para dizer adeus. Ele ficou ridiculamente surpreendido e percebi que não lhe agradou o meu desprendimento. Provavelmente sentia que eu lhe estava a roubar o papel, emasculando-o. Dei por mim a sorrir no elevador, enquanto descia. Pelo menos já era qualquer coisa. Durante a semana seguinte recebi vários telefonemas para o telemóvel, para casa e até para o trabalho. Por mais que me aborrecesse a insistência, também me agradava ser desejada e acabei por ceder. Continuámos a dormir juntos ao longo de dois meses mas ele não era assim tão interessante e o sexo não era assim tão espectacular e eu cansei-me depressa. Comuniquei-lhe a minha decisão de o excluir da minha vida, pois nem sequer me interessava para amigo, afinal não me tinha esquecido que ele partira o coração não de uma mas de duas das minhas melhores amigas. A reacção não foi agradável. Aparentemente ele não era desprovido de sentimentos e tinha-me escolhido a mim para alvo das suas afeições. Eu já me tinha apercebido há muito tempo da dificuldade monstruosa que os homens têm em lidar com a rejeição e por isso senti alguma preocupação. Mas foi apenas momentânea; meia garrafa de gin e três anti-depressivos depois já nem me lembrava que ele tinha existido. Porém, ele não se esqueceu de mim. Começou a esperar-me à porta do trabalho durante a hora de almoço para falar comigo. Parava o carro, pouco discretamente, junto à porta de minha casa, aos fins-de-semana, e controlava os meus movimentos. Em pouco tempo não havia nenhum lugar em que ele não estivesse e eu comecei a ter dificuldade em respirar. Experimentei ignorá-lo mas o resultado não foi bonito. Passei então a cumprimentá-lo com frieza, mas deu no mesmo. Aos poucos, fui-me habituando a ter aquela sombra doentia, até porque o resto da minha existência não era exactamente saudável. Até que um dia. Eu tinha ido beber uns copos, mais uns, com as amigas do costume, mas naquele dia estava a beber com demasiada sofreguidão e fiquei indisposta. Depois de vomitar na casa de banho do bar, bebi mais um copo, para lavar o sabor, e decidi voltar para casa mais cedo. Elas ficaram. Ele estava à minha espera à porta do bar, desta vez fora do carro. O hálito dele tresandava; qual de nós o pior. Voltei a lembrar-me do meu primeiro whisky. Ele agarrou-me com força pelos braços e começou a falar, muito perto de mim. O velho discurso. Eu estava mesmo cansada. Ele começava a inspirar-me um nojo profundo, e a sujidade da rua não ajudava. E eu estava mesmo cansada. Não foi difícil soltar-me e fazer-lhe perder o equilíbrio já instável com um pequeno empurrão. Enquanto ele se debatia com o álcool para se conseguir levantar de novo, eu tive tempo suficiente para procurar dentro da mala. Naquela tarde tinha estado a escolher uma prenda de aniversário para a minha mãe. Fiquei indecisa porque também havia um colar de ágatas amarelas que me agradou bastante. Mas acabei por escolher o abre-cartas com um lindo cabo de prata trabalhada e lâmina de aço inoxidável. Tive tempo para o retirar cuidadosamente do estojo. Ele estava quase de pé, apoiado a um carro. Não havia ninguém em redor. Eu avancei para ele e, com toda a força que tinha, levantei-o pelos cabelos e empurrei-o para cima do capot do carro. Encostei-lhe a lâmina romba à cara, por baixo do olho esquerdo, e jurei que o matava se ele não desaparecesse. Fiz força suficiente para lhe abrir um golpe na cana do nariz. Lambi-lhe o sangue da ferida – acho que estava um pouco anémica nessa altura – e limpei a lâmina no colarinho azul da camisa dele. Fui-me embora, excitada, enquanto ele praguejava na minha direcção. Chamou-me puta. Não sei porquê, mas decidi voltar para trás. A rua continuava estupidamente deserta à excepção da nossa presença. Cravei-lhe o abre-cartas em cheio no coração. E fui para casa feliz, como não me lembrava de me sentir desde pequenina, nos dias de festa. Mesmo feliz. Guardei o abre-cartas de recordação. Nunca ninguém soube que fui eu. Nunca fui apanhada. Foi apenas mais um caso de violência nocturna. Banal. As minhas amigas quiseram ir ao funeral e choraram, abraçadas, admitindo que ele podia não ser a melhor pessoa do mundo, mas mesmo assim sempre fora encantador. Eu reconheci, no meio dos rostos pesarosos, o pintor cujos quadros tinham inaugurado a galeria e fui falar com ele. Ele lembrava-se do meu vestido de veludo azul e convidou-me para jantar. Eu aceitei e dormi com ele nessa noite. E acabei por oferecer o colar de ágatas à minha mãe. Ela sempre gostou de amarelo.

sábado, 4 de outubro de 2008

Dois cigarros pensativos.

De pé, junto à janela, fumava um cigarro para fingir que fazia algo mais que pensar. Na verdade acabava por fazê-lo de facto. Mais estupidamente, acabava por pensar no facto de o fazer afinal. Algo mais que pensar. De tal forma que o cigarro e o pensamento se confundiam. E por um instante, pensou noutra coisa. Mas depressa regressou ao fluxo de ideias que a trouxera à janela, àquele cigarro. Um paradoxo de impotência total e controlo absoluto dominava-lhe os sentidos. Tinha consciência da existência física dos nervos, que deixavam de ser uma ideia abstracta para se tornarem dolorosamente palpáveis. Não estava a ser uma noite tranquila. Deixou que o fumo lhe invadisse outra vez a boca, a garganta, os pulmões. E não existia ar. Nem fumo, nem nada. Era vácuo dentro dela, selada. Sentiu a boca secar, a garganta arranhada, os pulmões pesados dentro do peito, cansados. Engoliu um pouco de água, do copo que segurava com a mão esquerda, e depois mais um pouco, até acabar. Sentiu o líquido fresco a bater pesadamente no estômago vazio. Não tinha fome. Agora já não. Imaginou o vazio da metáfora encher-se de fumo, mais uma vez. E o fumo era raiva. Uma raiva morna e suave. Porque só agora compreendia onde estava o seu verdadeiro erro. Uma falha de carácter que já tinha admitido há tanto tempo e só agora, só agora via que nunca tinha sido tão grave como com ele. Estúpida. Sentia-se estúpida. Ao mesmo tempo, sentia a invariável saciedade que lhe trazia a compreensão. Apagou o cigarro e acendeu outro, imediatamente. Ela não precisava de ser superior. Todas as vezes em que suportara a crueldade de uma guerra psicológica cuja arma era o terrorismo emocional, todas as vezes em que condescendera, em que não retaliara - já lá iam os tempos em que gritava e lhe tentava bater, assim como o histerismo silencioso da adolescência interna tardia – em que deixara passar, por acreditar que podia ser superior a tudo e sobreviver, foram de uma cegueira profunda. Que não pôde decifrar nesses tempos a arrogância que sempre apregoara tão humildemente, por ser tão melhor que os outros e conhecer tão bem a sua própria humanidade. Vontade de se esbofetear. Agora via que nunca tinha sido pior do que com ele. Na verdade, comparativamente, a condescendência para com o resto do mundo era absolutamente insignificante. Sim. Desta vez percebia o que tinha de fazer. Não precisava de ser superior. Ele é que tinha obrigação de ser uma pessoa melhor. Tão bom quanto ela, no mínimo. Não lhe admitiria nada que não admitisse a si mesma. Daí em diante ele não seria apenas humano como todos os outros, que cometem erros. Não. Isso não seria suficiente para lhe justificar as más acções. Nunca voltaria a perdoá-lo. Porque o perdão era merecido por quem lhe mostrava arrependimento. Aliás, não só não voltaria a perdoar espontaneamente, como sentia todas as velhas feridas a reabrir. Retirava-lhe todos os perdões antigos. Todas as feias recordações que tinha dele nadaram até à superfície. E limpando uma, mais rebelde, da face, apagou o segundo cigarro e abriu a porta do quarto. Com um sorriso extraordinariamente psicótico nos olhos e na boca, disse-lhe: “Eu sou a Nicole Kidman. Tu és Dogville.” E saiu de casa, sem sequer se preocupar com o facto de ele nunca ter visto o filme.