sexta-feira, 14 de abril de 2006

Jean-Arthur, mon amour.

Sou uma fada verde desde sempre. O absinto estava no meu destino, eu é que não sabia. E o nosso amor é verde; é verde-absinto. Dancemos de garrafas vazias na mão, até cairmos zonzos e cansados. Pena não sabermos dançar. Pena dançarmos tão mal. Mas não importa porque contigo não há nada que não seja correcto e bonito. Nem o absinto. Contigo, as estrelas estão sempre alinhadas. Alinhavadas na nossa sede. Dancemos então, até cairmos. Dancemos, Jean-Arthur, até cairmos na areia escaldante do deserto, mon amour. Caídos de amor, deixemos os nossos corpos derreter com o calor. Sempre quis saber a que sabem os lábios de um poeta. Tu és o poeta rebelde. E os teus lábios estão quentes, Jean-Arthur. Esperava que estivessem frios como os dos homens mortos, mon amour. Mas os teus ainda murmuram palavras. E tens palavras de uma morbidez tal que ninguém te diria imortal.

Estamos deitados na areia; já bebemos, já dançámos, já nos beijámos. Parte a garrafa, mas cuidado com os vidros, não te cortes. Estás descalço. Chora agora, escondido no meio do meu abraço, porque para mim a tua poesia não é uma mera alínea. Estou contigo na Abissínia. O amor é um deserto e é a poesia que nos mata a sede. Ou pensaste que era o absinto? Não te afogues, não te esqueças. Jean-Arthur, és para sempre, mon amour.




*





"Nos desertos do amor andou Rimbaud,
Ninguém sabe se chorou.

E a poesia? Mera alínea?"


Lamento de Rimbaud, Sérgio Godinho

quarta-feira, 12 de abril de 2006

Numa noite qualquer.

- Onde é que queres que te deixe? Em casa? - perguntou ela.
- Não. Não quero que me deixes em lado nenhum. Nunca. - respondeu ele.
- Está bem. - disse ela.

Houve uma pausa.
E em seguida houve um beijo extremamente sensual em que o lábio inferior dela deslizou lentamente por entre os lábios dele. Tinham os olhos apenas semicerrados e não sorriam.

Vrruuuuuum!

E foram felizes para sempre.

segunda-feira, 10 de abril de 2006

Inutilidades com sentido:

- Gesto inútil de fechar os olhos para não ver as imagens que nos passam pela mente e torná-las ainda mais nítidas na escuridão;
- Gesto inútil de suster a respiração para acalmar o passo do coração e ficar sem fôlego, acelerando-o ainda mais;
- Gesto inútil de parar de andar porque nos tremem os joelhos e sentir que o chão nos foge debaixo dos pés;
- Gesto inútil de chorar para expulsar a tristeza e ficar o coração ainda mais seco e vazio que antes;
- Gesto inútil de dizer que não desviando o olhar e denunciar o sim que queríamos gritar;
- Gesto inútil de abrir os olhos com toda a força para não chorar e as lágrimas acumularem até não caber nos olhos e caírem livremente até termos de os cerrar.


Tolos que somos, desviamo-nos dos espelhos e tentamos enganar-nos a nós próprios, mas há coisas de que não podemos fugir. Para quê mentir?

quinta-feira, 6 de abril de 2006

Amanhecer.

A noite extinguia-se diante dos teus olhos. Pensaste que seria o momento oportuno. Mas não sabias que caminho havias de tomar. Enquanto o negro do céu se tornava violeta e depois azul e as estrelas desapareciam aos poucos, ficaste a pensar. Havia tempo. Não muito, mas um pouco era o suficiente. Pelo menos até que surgisse a manhã. Pensaste em caminhar depressa, muito depressa, quase a correr, até casa. Antes que o brilho do sol te cegasse os olhos desabituados da luz, ao despontar. Podias fechar as persianas do teu quarto e dormir até ao fim da tarde, sem sonhar. O descanso absoluto. Mas sabias que não ias conseguir porque as insónias eram agora a excepção que se tornara regra. Constantes. Sentias até que eram praticamente a única coisa com que podias contar, que tinhas de certo na tua vida.
Em vez disso, escolheste outra rota. Levantaste-te cheio de calma, ainda que fosse uma calma auto-imposta, e sacudiste a areia das calças. Voltaste as costas ao ponto mais claro do céu, onde o sol ia nascer, trepando pelas ondas, e dirigiste-te devagarinho para uma esplanada. O café ainda estava fechado, mas tu não te importavas de esperar. Sentaste-te numa cadeira verde de plástico, sem te preocupares com a humidade da noite que se acumulara no assento, e puxaste de uma folha de papel do bolso interior do teu casaco de camurça. Procuraste a caneta e quando a encontraste começaste a escrever uma carta. A folha colava-se à mesa meio molhada, mas estavas tão concentrado nas palavras que nem notaste. Era uma carta do teu eu para ti. Como se te dividisses em dois e isso te tornasse mais completo. Também não te apercebeste do aumento gradual da intensidade da luz que incidia nas tuas palavras escritas avidamente e só ao pousares a caneta é que viste que já era de dia.
Tal como a carta, também tu estavas pronto. Não para começar de novo, mas para continuar de forma diferente. O que ficava para trás continuava a ser importante mas o que tinhas pela frente, ou o que podias fazer disso, prometia ser muito melhor.
Levantaste-te da cadeira, ainda com o café fechado, e andaste muito depressa, quase a correr, até casa. Entraste no teu quarto, descalçaste-te e despiste o casaco. Mas em vez de te deitares para tentar dormir, foste até à cozinha fazer o pequeno-almoço. Estavas mais acordado do que nunca. O que escreveste não importa. Afinal, era só para ti. Mas sei que no final do dia, quando finalmente te deitaste, dormiste o melhor sono da tua vida, desde criança. Sem qualquer lembrança de insónias.