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sábado, 2 de julho de 2011

Da ilimitação imaginária.

Principiamos por desejar o real. Desejamos o que podemos ver. Depois de o possuirmos arriscamos imaginar o impossível. E, de repente, damos por nós a desejá-lo, damos por nós a desejar o impossível, porque podemos vê-lo na nossa mente. E dá-se um fenómeno qualquer, em que a partir do instante em que o desejamos, deixa de ser impossível.
Foi um vislumbre de qualquer coisa que nos deixou petrificados, foi um reflexo na água, um gesto pequenino que mudou a nossa concepção do universo, um tom de voz mais invulgar, um sítio qualquer onde chegámos sem saber que era para lá que estávamos a ir mas quando chegamos percebemos que não havia nenhum outro lugar onde quiséssemos mais estar. Esse deslumbramento breve deixa uma impressão gravada no corpo, qualquer coisa que se agita de vez em quando, ou para sempre, talvez se agite para sempre de vez em quando. E não sabemos como chamar a isso, porque é misterioso e não tem contornos. Não tem limites. Porque principiou por ser imaginado.
A minha imaginação é a minha maldição.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Do saber esperar.

Às vezes penso que vou esperar para sempre. Gabo a mim mesma a minha enorme paciência mas até eu tenho momentos de dúvida. Às vezes tenho vontade de desistir, vontade de esquecer, vontade de ser egoísta para sempre. Às vezes quero procurar um prazer simples, sem quaisquer intenções nobres à mistura, sem ser maior do que ninguém, sem as presunções de uma moralidade auto-imposta. Esta vigilância constante cansa-me. É difícil ter bons sentimentos quando os faço durar tanto. A solidão torna-se confortável ao fim de algum tempo e o amor é de facto o lugar mais estranho de todos. Quando chega ao fim sinto alívio porque posso voltar a mim, voltar para mim, ao meu egoísmo, à minha solidão confortável, ao meu normal.

Claro que as leis universais não se aplicam a mim. Nem tudo se transforma. Há coisas que se perdem. Eu podia dizer que o grande amor que tenho dentro de mim se transforma nestas palavras e por isso não se perde e é valioso. Mas seria mentira. Também podia dizer que são dor. Mas também não seria verdade. A minha dor já deixou de ser dor há muito tempo e agora é apenas nostalgia. As palavras são o que são. São a minha ficção egocentrada.

Isto não quer dizer que eu não seja feliz. Sou talvez uma das pessoas mais felizes que conheço. E eu conheço-me bem, que não restem dúvidas disso só porque às vezes ainda me consigo surpreender. E mal posso esperar pela próxima grande surpresa. Mal posso esperar pelo momento em que vou perder a paciência, o momento da explosão, do desastre, da fúria devastadora, da revolução. É por esse momento de revolta contra mim mesma que espero. Pacientemente, espero pelo momento em que não vou esperar mais.

sábado, 20 de novembro de 2010

Bom dia, e um sorriso.

Bom dia, e um sorriso. Bom dia, sorriso. Mais um. Passo rápido, às vezes abrando para sorrir melhor, outras não é necessário, sorriso veloz. Bom dia e um sorriso ao sair, bom dia e um sorriso ao entrar. E ao sair outra vez. E ao entrar, se lá está alguém. Às vezes olá em vez de bom dia. Não importa. O que conta é o sorriso. É nele que está o segredo. É nele que está a urgência. Sorrir a alguém, não importa quem, sorrir a quem não conheço. Como se os outros precisassem mais do meu sorriso do que eu mas eu ganhasse uma recompensa qualquer. E há qualquer coisa que o meu sorriso transporta até à outra pessoa, não importa quem, e há qualquer coisa que volta para mim no sorriso dessa pessoa. Não podemos guardar os sorrisos dos outros, é preciso devolvê-los. Mas receio esquecer-me de algum. Terei esquecido algum sorriso? Terei roubado o sorriso a alguém sem o saber e agora não sei de quem é para o poder devolver? Terei roubado o sorriso a alguém por maldade e depois esquecido que o guardei porque não gosto de pensar que sou má? Alguém terá ficado com um sorriso meu e se esqueceu de o devolver, ou não teve tempo, ou não viu, ou não percebeu que era a sua vez, ou não sabia como, ou teve medo, ou quis ficar com ele por qualquer razão, porque sim, porque não? E começo a pensar que me faltam bocados, e que esses bocados andam perdidos nos sorrisos, na rua, nos olhos das pessoas, em segredo. E tento desvendar essas coisas, à cautela, e procuro, com um sorriso, como quem não quer a coisa, mas quero, quero sorrir, como se disso dependesse a minha vida, como se no dia em que eu não sorrir a ninguém pudesse ser o dia em que vou morrer. E quando chego fecho a porta e sei que não estou a sorrir, vou à procura de um espelho e sorrio para mim e devolvo o sorriso a mim própria ao mesmo tempo e há outra vez qualquer coisa que passa para trás e para a frente ao mesmo tempo e sou apenas eu, sou eu que passo para trás e para a frente, às voltas comigo mesma, à procura de qualquer coisa que não sei onde perdi ou sequer se cheguei a encontrar, se cheguei a possuir, porque não sei o que é, nunca vi, nunca percebi, mas faz-me falta não sei porquê. Não sei explicar o porquê desta necessidade mas faço a vontade a mim própria e continuo a sorrir, todos os dias a sorrir, como se disso dependesse a minha vida, com a sobrevivência no sorriso, a vida. Mas quando penso assim nos meus sorrisos, quando a necessidade não é de sorrir mas de explicar o porquê da necessidade de sorrir, o porquê da vontade de sorrir, o porquê de sorrir tanto, não consigo evitar, fico um pouco triste. Não consigo evitar, porque vejo estranheza em tudo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

As coisas simples.

Quando eu era criança, tinha várias formas de me entreter. Como todas as outras crianças descobria o fascínio das coisas simples. O meu simples respirar era uma coisa complexa e deslumbrante. Podia inspirar depressa ou devagar, experimentando o excesso ou a falta de oxigénio, podia respirar pelo peito, pela barriga e até pela cabeça ou pelos pés. Dormir também não era apenas dormir. Sentia-me grata pela facilidade com que adormecia e por esta ser igual àquela com que acordava. Antes de fechar os olhos, deitada, sentia o sangue percorrer o meu corpo todo, incrivelmente feliz por poder senti-lo, no escuro. De manhã, surpreendia-me com os sonhos extraordinários que tinha sonhado enquanto dormia. E por tudo isto, gostava de dormir. Era algo de grandioso, dormir.
Agora, às vezes, deixo-me afundar na complexidade de algumas coisas. Às vezes, perco-me numa espécie de labirinto de mim mesma. E ouço alguém dizer que gostava de voltar ao tempo em que as coisas eram simples. E eu penso, quando é que as coisas alguma vez foram simples? Se o mais pequeno gesto, a mais insignificante realidade, estiveram sempre carregados de um significado esmagador? Se respirar nunca foi apenas respirar nem dormir foi apenas dormir? Se eu nunca pude fazer nada sem pensar, aterrorizada, nas consequências irremediáveis que iria sofrer? Como se segurar num copo de determinada maneira pudesse mudar a minha vida para sempre. E pode. Claro que pode.
Eu sei que nunca haverá um tempo em que as coisas serão simples. E não é isso que me assusta. A não ser nos raros momentos de fraqueza. Porque tudo se torna tão mais interessante. E torna-se tudo tão valioso e insubstituível. Mas é que, às vezes, essas em que tenho medo, essas em que racionalmente admito a minha fragilidade, às vezes receio não conseguir sobreviver à intensidade de esperar que o metro chegue, ou que o meu coração ceda enquanto mexo o açúcar no fundo de uma chávena.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

De me lembrar das coisas.

Estive a pensar em ti, mais uma vez, e a lembrar-me de coisas pequenas, de pormenores soltos. Gostava que pudesses fazer o mesmo. Gostava que tivesses uma memória igual à minha, para te lembrares de tudo o que eu disse e com que intenção. Para te lembrares do que eu tinha vestido quando o disse e quais os gestos que fiz. Acho que se tivesses uma memória como a minha me terias amado mais. Talvez me tivesses conhecido melhor, compreendido melhor. Imagino que te lembres vagamente do meu cheiro e da cor dos meus olhos. Mas queria que te lembrasses do resto. Que as minhas palavras te ressoassem nos ouvidos e no coração. Não eram apenas pistas, não eram simples divagações. Eram ideias claras, mapas, bússolas, barómetros. Desenhei com nitidez tudo o que sentia para tu poderes ver. Mas não te consegues lembrar. Ficou-te uma vaga ideia. E eu lembro-me de todas as revelações, de todos os indícios, de todos os pressentimentos, de tudo o que tentaste dizer e tudo o que eu pude adivinhar em reticências inconsequentes. Talvez por isso eu soubesse amar tanto e tão bem. Talvez por isso eu saiba amar melhor. Sinceramente.
Claro que também me lembro de coisas tristes, mas depois de terem passado e serem apenas memórias, fazem-me sorrir. Mesmo as tristes. E claro que às felizes também sorrio. É por isso que às vezes pareço tola, de tanto me rir sozinha. É que me lembro de tudo e há sempre qualquer coisa a acordar em mim a cada momento. E eu rio, apenas. E é bom, e eu gosto de me lembrar de ti. Mas se me lembrar mais do que um bocadinho, se tiver tempo para me ficar a lembrar de ti uma tarde inteira, o sorriso torna-se amargo, azeda-me na boca. Porque sei que me lembro sozinha. E já era assim antes. Antes do fim. O fim, que nunca é bem um fim, tu sabes. Comigo nunca nada é uma coisa só. Talvez por isso te tenhas perdido, nas bifurcações. Quando me doer a cara de tanto me lembrar de ti, hei-de procurar-te, outra vez. Para te fazer lembrar um bocadinho, mesmo sabendo que a ti te custa. Mas é importante que lembres. Para que as coisas não percam o sentido. Para que saibas porquê. Para que compreendas melhor. Para que compreendas que o teu amor é simples de mais para mim. Para que compreendas que não basta amares o meu cheiro e a cor dos meus olhos, ou uma vaga ideia de mim. Mas mesmo que não compreendas, eu perdoo-te. Já perdoei antes. E vou continuar a lembrar-me de quem tu és debaixo disso tudo, mesmo que já não te lembres de me teres mostrado.

domingo, 31 de maio de 2009

A morte sou eu.

Às vezes choro com sede de perda. Invejo aqueles que conheceram a morte e podem chorá-la. O meu vazio é a ausência de perda. Não gosto de lutar para que as coisas permaneçam perfeitas e iguais. Preciso de erros para reparar, de desgostos para superar. De lutar para ficar bem. Sou uma perfeccionista, insistentemente em busca de imperfeições para consertar. O que me move é o horror e horroriza-me a minha boa vida. Sou invadida por uma ansiedade, um prenúncio de devastação. Eu sei o que se segue. Vou matar qualquer coisa de bom para poder remediar esse erro. Para sofrer e poder lutar por ficar bem. Eu não sei canalizar as minhas pulsões. Sem morte não sinto vida. Não cresço. Fico egoísta, desejando a morte para poder viver melhor. E a morte sou eu. Porque estou aqui a respirar para nada e a chorar porque não estou triste.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Amo-te.

Às vezes gostava que fosse como nos sonhos, qualquer caminho que se siga é estranhamente certo e vai sempre dar a algum lugar, longe ou perto. Todos os gestos têm significados profundos, as palavras são misteriosas mas incisivas. São belos os meus sonhos, gosto de dormir neles. São confortáveis e quentes, como a minha cama. Gosto quando me tocam nos meus sonhos porque nunca me incomoda e só me toca quem eu desejo. A imagem do sorriso dele enche o ecrã da minha mente adormecida, o som da sua gargalhada divertida contagia a gargalhada que sinto no coração enquanto durmo. A mão que me afaga o rosto é grande e macia. As palavras ditas e trancadas no sonho, em segredo absoluto do mundo, enchem-me de esperança. Passo-lhe os meus longos dedos pelo cabelo, em retribuição, devagar. E fica tudo bem. Fica sempre tudo bem. Acordo com o telefone e respondo de voz estremunhada, arrastada, dolente. Não queria sair do meu sonho, revolto-me cheia de sono e de raiva. A voz que me fala, carinhosa, não é a mesma que sonhava há minutos, nem o sorriso, nem o cabelo, nem as mãos, nem as palavras. Não está comigo. O meu rosto contorce-se numa agonia silenciosa. A minha boca abre-se num grito mudo e ensurdecedor, e o quarto enche-se dele. Os olhos estão húmidos mas nenhuma lágrima se atreve. Já desliguei o telefone. A culpa já me pesa desde o segundo em que acordei. Tento voltar ao sonho, fechando os olhos com desespero, mas esta minha culpa é esmagadora e não mo permite. Por entre o meu esgar interminável, da minha boca entreaberta, escapa-se um gemido incontrolado. Dura apenas um segundo, logo abafado pelo lençol que mordo em soluços secos. Não faço um som. O coração dentro do peito dói-me e pesa como uma grande pedra aguçada. Às vezes penso que se me alimentasse melhor o sangue me correria mais fácil e fluidamente pelas veias. Dói-me cada momento de vida. Fixo o tecto e tento limpar os pensamentos, em imobilidade total. Volto a libertar os meus músculos e permito-me, não, obrigo-me a levantar. És tão forte. Não tenhas medo. Está um dia lindo lá fora. Amo-te. Sorri.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Fim de um Inverno.

No meio da confusão dos corpos era difícil distinguir onde estava a verdade. Fechava os olhos e era como se os mantivesse abertos. A sucessão de imagens que lhe cruzavam a mente, fazendo o sangue subir-lhe às faces, correspondia à velocidade frenética de movimentos que a rodeavam. Era apenas uma rua cheia de gente com pressa para passar, pouco se importando com os encontrões que dava ou recebia ou com os calcanhares que pisava; mas parecia um quarto fechado, de janelas embaciadas pelas respirações sincronizadamente ofegantes. Nunca uma multidão lhe parecera tão obscena. Nem mesmo os grossos e compridos casacos invernais conseguiam esconder a nudez insípida e desinteressante a que estavam condenados. Apenas o conforto de um rosto belo no meio da orgia de transeuntes lhe pode acalmar a repugnância. Caminhava como que acima da multidão. Em perfeição. E vinha a sorrir, muito ao de leve. Muito ao de leve, cruzou o ombro com o seu. Foi um roçar delicado, como o sorriso, mas o suficiente para que deixasse de lado o seu profundo desprezo pelo mundo, apenas por um instante. O seu coração dorido deixou de arder por um instante, só por constatar que ainda existia uma réstia de gentileza no mundo. Talvez valesse a pena respirar mais um pouco, talvez até encontrar o próximo sorriso perdido na rua que restaurasse em si a vontade de caminhar devagar. Mesmo sem abrir o guarda-chuva.

*

“If love is shelter/I’m gonna walk in the rain”

If Love Is a Red Dress (Hang Me In Rags), Maria McKee

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Apontamento

E de repente, fez sentido. Não era uma história simples, o que eu queria mostrar não eram as calamidades de uma tragédia de amor impossível. Era sobre o amor, sim, mas mais do que isso, era sobre como o amor é possível. E depois de todos os episódios dramáticos que me inundavam o cérebro percebi onde estava a razão. E o desafio de que sempre fugi. O desafio pronunciado há muitos anos, nas palavras tímidas de um amigo que sempre soube perceber o que era, até mesmo antes de mim. "Nunca vais ser feliz enquanto não conseguires escrever quando estás feliz. " Soavam a profecia, pareciam impossíveis de cumprir. Martelavam-me as ideias de tempos a tempos. E depois de tanto tempo, houve um momento de clareza. Foi a primeira história, a primeira de todas, a que me fez querer continuar, a que pela primeira vez me fez sentir aquela coisa indefinível que é sede e saciedade ao mesmo tempo, que é gloriosa mas aterradora, que me deixa num limbo entre o desespero e a esperança. A história inacabada: “Eles estavam felizes e eu não fui capaz de escrever mais.” Eu sabia que a história era trágica, afinal era da minha cabeça, e por mais que eu gostasse de dizer que o que sentia era piedade (pobres personagens a quem vou roubar a felicidade que eu mesma ofereci), a versão sincera obriga-me a admitir que era inadequação. Afinal, nunca tive qualquer espécie de escrúpulos no que diz respeito a finais cruéis. Agora sei que o final trágico que eu tinha previsto, pode ser apenas o início de algo muito maior. E finalmente, a primeira história ganhou um objectivo, já não está irremediavelmente perdida. Ao fim de tantos anos, encontrei o sentido que lhe faltava. Finalmente, pode deixar de ser mais uma história de amor trágico e impossível. Será a primeira história feliz.

sábado, 4 de outubro de 2008

Dois cigarros pensativos.

De pé, junto à janela, fumava um cigarro para fingir que fazia algo mais que pensar. Na verdade acabava por fazê-lo de facto. Mais estupidamente, acabava por pensar no facto de o fazer afinal. Algo mais que pensar. De tal forma que o cigarro e o pensamento se confundiam. E por um instante, pensou noutra coisa. Mas depressa regressou ao fluxo de ideias que a trouxera à janela, àquele cigarro. Um paradoxo de impotência total e controlo absoluto dominava-lhe os sentidos. Tinha consciência da existência física dos nervos, que deixavam de ser uma ideia abstracta para se tornarem dolorosamente palpáveis. Não estava a ser uma noite tranquila. Deixou que o fumo lhe invadisse outra vez a boca, a garganta, os pulmões. E não existia ar. Nem fumo, nem nada. Era vácuo dentro dela, selada. Sentiu a boca secar, a garganta arranhada, os pulmões pesados dentro do peito, cansados. Engoliu um pouco de água, do copo que segurava com a mão esquerda, e depois mais um pouco, até acabar. Sentiu o líquido fresco a bater pesadamente no estômago vazio. Não tinha fome. Agora já não. Imaginou o vazio da metáfora encher-se de fumo, mais uma vez. E o fumo era raiva. Uma raiva morna e suave. Porque só agora compreendia onde estava o seu verdadeiro erro. Uma falha de carácter que já tinha admitido há tanto tempo e só agora, só agora via que nunca tinha sido tão grave como com ele. Estúpida. Sentia-se estúpida. Ao mesmo tempo, sentia a invariável saciedade que lhe trazia a compreensão. Apagou o cigarro e acendeu outro, imediatamente. Ela não precisava de ser superior. Todas as vezes em que suportara a crueldade de uma guerra psicológica cuja arma era o terrorismo emocional, todas as vezes em que condescendera, em que não retaliara - já lá iam os tempos em que gritava e lhe tentava bater, assim como o histerismo silencioso da adolescência interna tardia – em que deixara passar, por acreditar que podia ser superior a tudo e sobreviver, foram de uma cegueira profunda. Que não pôde decifrar nesses tempos a arrogância que sempre apregoara tão humildemente, por ser tão melhor que os outros e conhecer tão bem a sua própria humanidade. Vontade de se esbofetear. Agora via que nunca tinha sido pior do que com ele. Na verdade, comparativamente, a condescendência para com o resto do mundo era absolutamente insignificante. Sim. Desta vez percebia o que tinha de fazer. Não precisava de ser superior. Ele é que tinha obrigação de ser uma pessoa melhor. Tão bom quanto ela, no mínimo. Não lhe admitiria nada que não admitisse a si mesma. Daí em diante ele não seria apenas humano como todos os outros, que cometem erros. Não. Isso não seria suficiente para lhe justificar as más acções. Nunca voltaria a perdoá-lo. Porque o perdão era merecido por quem lhe mostrava arrependimento. Aliás, não só não voltaria a perdoar espontaneamente, como sentia todas as velhas feridas a reabrir. Retirava-lhe todos os perdões antigos. Todas as feias recordações que tinha dele nadaram até à superfície. E limpando uma, mais rebelde, da face, apagou o segundo cigarro e abriu a porta do quarto. Com um sorriso extraordinariamente psicótico nos olhos e na boca, disse-lhe: “Eu sou a Nicole Kidman. Tu és Dogville.” E saiu de casa, sem sequer se preocupar com o facto de ele nunca ter visto o filme.

sábado, 20 de setembro de 2008

Reencontro

Play

Olharam-se nos olhos e ele disse:
- Andei a perder o meu tempo contigo. És das pessoas mais desinteressantes que já conheci.
Ao que ela respondeu:
- Não viste nada.
E, fechando o punho direito, puxou atrás o braço e assentou-lhe um soco no maxilar esquerdo, deixando-o a escorrer um fio de sangue pelo canto da boca e partindo dois dedos da mão: o médio e o anelar.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e, sem dizer nada, beijaram-se uma e outra vez, tentando em poucos minutos recuperar o tempo perdido.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e, sem dizer nada, ele beijou-a. Mas ela afastou-o bruscamente, dizendo:
- És das pessoas mais desinteressantes que já conheci. Não me faças perder mais tempo.
E voltou-lhe as costas.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e ele disse:
- Eu gosto de ti e sei que também gostas de mim. Já chega de perder tempo. Fica comigo.
E ela respondeu, com dureza:
- Eu não mereço ser amada, eu não sei ser amada. Não percas o teu tempo comigo porque eu vou sempre escolher o escuro. De lá vejo melhor. É por isso que vejo tão bem o amor. Porque estou à sombra. Não vês a cor da minha pele? É pálida.
Sentindo-se dominar pela revolta, ele pergunta:
- Mas podia ser diferente. Como é que podes não escolher o amor?
- Já disse. – respondeu ela, com muita calma – Para o compreender melhor. Estás a ver esta? – e apontou para o chão, para a sua própria sombra – Nem tu a podes iluminar. Ninguém pode.
E voltou-lhe as costas, para sempre.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e ela disse:
- Não podes fingir que este encontro não significa nada. Vamos fazer de conta que nunca chegámos a perder tempo e tentar outra vez. Fica comigo.
E ele respondeu, com dureza:
- Foi muito fácil apaixonar-me por ti. E inacreditavelmente difícil esquecer-te. A que é que achas que dou mais valor?
Abismada, ela pergunta:
- Como é que podes não escolher o amor? Podia ser diferente, desta vez.
- Nunca é diferente com ninguém. É sempre tudo igual. E eu não estou a não escolher o amor. Simplesmente escolho não o ter contigo.
E voltou-lhe as costas, para sempre.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e após um breve silêncio, ela disse:
- Há quanto tempo… Então, ‘bora tomar café?
Ele sorriu e respondeu:
- ‘Bora!
E afastaram-se os dois, rindo, como velhos amigos.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos por uma breve fracção de momento e, apressadamente, desviaram o olhar fingindo não se ter visto, seguindo cada um o seu caminho, em direcções opostas, ambos imaginando que se tinham beijado.
Para sempre.

Stop

The End

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Cena de paixão escaldante improvisada

Apenas duas cadeiras. E eles sentados frente a frente, sem nada entre si a não ser o ar que partilhavam em respirações nervosas.
- Então, o que é que tens feito? – perguntou ele - Não sei nada de ti há meses.
- Hhmm. O de sempre. Nada de especial. Apaixonei-me e voltei a desapaixonar-me nos entretantos mas fora isso, fui eu e a praia. – respondeu ela.
- Não tiveste saudades minhas?
- Sinceramente, não pensei muito em ti. Volta e meia lembrava-me da tua cara mas esquecia-me logo a seguir. Sem ofensa. Aliás, agora que penso nisso, é estranho. Quando me lembro de ti, estás sempre muito sério. Costumo lembrar-me das pessoas quando estão a rir, às gargalhadas mesmo.
- Estás a tentar dizer que não tenho piada? – provocou ele.
- Não, até tens a tua graça. Suponho que as minhas recordações de ti não sejam muito felizes. Não são. – e encolheu os ombros, com uma certa indiferença.
- Nesse caso devíamos fazer alguma coisa para mudar isso. – soerguendo-se, beijou-a impetuosamente. A princípio ela correspondeu com intensidade, desencostando-se da cadeira na direcção dele e agarrando-lhe o pescoço com as duas mãos, depois do que o empurrou bruscamente e se levantou de um salto, ofegante. Com toda a força que tinha, deu-lhe um estalo na face esquerda.
- Podes parar por aí. – disse, com azedume.
- O quê? Vais dizer que não te sentes atraída? Não foi isso que me pareceu. – desafiou ele, com um sorriso sobranceiro, agarrado à cara.
- Se eu beijasse e fodesse todas as pessoas por quem me sinto atraída, para além de bissexual, era uma puta. Ora não sou nem uma coisa nem me considero ou aspiro à outra. Podes parar. – repetiu, já com a respiração mais calma, mas nem por isso com o coração menos acelerado.
- Quem é que falou em foder?
- Não se falou mas pensou-se. Não me chames estúpida. Sei bem que estás a pensar por aqui – agarrou-lhe os testículos – e não por aqui. – largando-os, bateu-lhe com os dedos na testa, furiosamente. – Eu não gosto das coisas pela metade. Quando quero, quero tudo. Por isso não quero. Podes parar. – voltou a repetir.
- Desculpa. – disse ele, largando a cara humildemente, chegando mesmo a corar de nervosismo, sem saber o que fazer a seguir.
Ela olhou para aquele rosto acriançado e leu o embaraço dele. Atirando a cabeça para trás, suspirou, impaciente. Teria de ser ela a tomar as rédeas. Deu-lhe outro estalo, na mesma face. Ele continuou sem reacção, olhando-a fixamente, indeciso. Ela voltou a esbofeteá-lo, desta vez na face direita. Subitamente, decidindo-se, ele ergueu a mão e, sem se conter minimamente, retribuiu o estalo. Ela viu estrelas e, ainda meio zonza mas contente por finalmente o ter arrancado do bloqueio, puxou-o bruscamente pelo cós das calças, beijou-o o mais agressivamente que conseguiu e despiu-lhe a camisola, atirando-a para longe, pelo ar.
Parando, romperam os dois em gargalhadas nervosas enquanto a assistência rompia em aplausos, assobios e comentários jocosos:
- Come on baby, light my fire!
- Eh, porno stars aí!
- Hardcore, heavy-metal!
- Desculpem lá mas isso foi muito à reality-show! Que bimbos, pá!
- Boa. – rematou a encenadora, fazendo-lhes sinal para se sentarem. Eles assim fizeram, satisfeitos, dando lugar ao próximo exercício.
- Já te estavas a esticar, bebé. – disse ele, enquanto voltava a vestir a camisola.
- Estava em personagem, pá. – e desataram os dois a rir outra vez.

sábado, 26 de julho de 2008

Nunca estamos sós (We’re never alone)

O riso mais feliz foi o que repeti de todas as vezes em que rimos juntos. As lágrimas mais tristes foram as que não precisei de vos esconder. As palavras mais amargas foram as que pude balbuciar porque me ouviam em silêncio. Os gestos mais sinceros foram os que não precisaram de significado para vos dizer alguma coisa. O tempo mais útil foi o que ocupámos sem fazer nada em conjunto. Os dias mais importantes foram os que passei convosco e já não me lembro porque não é preciso para saber que foram bons. As pessoas mais bonitas são as que me fazem sentir falta de mim como sou quando estamos juntos. A solidão mais profunda é aquela que a vossa mera existência arranca de mim.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Sol em mim.

É depois das noites sem dormir que penso melhor. Talvez porque pense mais em linha recta. O cansaço não permite as contracurvas costumeiras. O sono, ou a falta dele, transforma-se num tipo de energia diferente. Distante. Fico ausente do tempo real embora o espaço fosse familiar, demasiado até. Os óculos escuros protegiam-me os olhos do vento enquanto observava o vai e vem das nuvens, de barriga para cima. Passam-me trezentas imagens pela cabeça numa sucessão descontínua. O tema era sempre o mesmo. Estava feliz. Não, é exagero. Talvez me sentisse contente. Estava bem. Sim, por uma vez seria verdade e não o diria apenas por hábito. Não precisava de um espelho para ver que os olhos me brilhavam e dei por mim com um sorriso aparentemente indelével nos lábios. Não foi de propósito. É que me sentia bem. Meio febril talvez, mas isso seria das horas sem dormir acumuladas. Estava verdadeira. Estava real. Que seria feito daquela raiva toda que me apertava os dentes ainda na semana anterior? Agora fazia-me sorrir também. "Passou." Que grande calma para tanto vento. Quem me visse assim desgrenhada poderia pensar, sem dúvida, em loucura, em alucínio, mas confesso que há muito não me sentia tão sã. E não importava se no dia seguinte fosse a vez de me passar o bem-estar. Um dia bom é combustível para muito mau tempo. Nem a chuva me podia derrotar - porque nesse dia não me esqueci do chapéu e tinha vontade de andar.
E de súbito uma rajada de vento mais forte obrigou-me a fechar os olhos pois nem os óculos eram o suficiente para os proteger. Senti algo a embater no meu peito e a cair-me no colo. Abri os olhos de novo e peguei-lhe. Fiz girar entre os dedos o pequeno objecto quadrado e cinzento e soltei uma gargalhada. Uma tecla de computador: o número um e o ponto de exclamação. Trauteei para dentro: Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida! No bom sentido é claro. Porque os sinais que me batem no peito só significam aquilo que eu quiser. O significado altera-se mas o sol está mais quente.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Mar verde como relva verde como mar

Alguns versos soltos para aliviar o tédio. Como num sonho. Queria falar sem parar. Sem ninguém a ouvir. Sem ninguém a olhar. E chorar enquanto falo, deixar as lágrimas correr, os olhos como torneiras estragadas, dois rios que não correm para lado nenhum porque não tenho mar. Percorrer margens verdes que nunca acabam e nunca ter de chegar. Não quero chegar mas também não quero ficar. Deixa-me andar por favor. Só quero andar sem ter de escolher o caminho. Sem ruas, sem passeios, sem semáforos, sem nada que me obrigue a parar. A sério que não estou à procura do mar. Sei onde ele está e vou na direcção contrária. Deixa-me afogar. Posso fazê-lo em terra. Até posso boiar. Ou será que assim se chama flutuar? Não. Eu sei que sentada no chão estou a boiar. Lá porque tu não vês... Não estou nada a chorar. Era mentira. Eu não choro. Nunca chorei. E também não minto apesar de não conhecer a verdade. Sei lá o que isto é. Chama-lhe coisas se quiseres. As tuas mãos não tocam no mesmo que eu nem ouvimos a mesma música nem vimos o mesmo filme nem gostamos das mesmas ruas nem sorrimos das mesmas coisas. Mas se tocamos coisas e podemos ouvir e podemos ver e sabemos gostar e sabemos sorrir, então é porque somos iguais, à nossa maneira. Mas lá porque estou a escrever não quer dizer que esteja a pensar em ti. Quem és tu? Quem és tu? Também não sabes de mim nem onde estou. Não vou deixar que me voltes a encontrar. Se vais sair fecha a porta quando saíres porque é para isso que ela aí está. E não digas adeus porque também já não disseste olá. Desilude-me mais. Eu ensino-te.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Bicho de sete cabeças.

Confesso que perdi o controle algumas vezes. Vezes em que a cada passo que dava conseguia sentir o medo a aumentar dentro de mim. Mas sem conseguir parar ou voltar para trás. Como um soldado que se aproxima de terreno inimigo. Sabe que não pode deixar o pânico vencer ou é o fim. Ou imagino que seja. Embriaga-se em adrenalina e por alguns momentos esquece-se de quem é ou como se chama aquela terra. Ou imagino que se esqueça. E só quando sai é que pensa sobre isso. Se é que pensa. Se é que sai. Já me esqueci de quem sou. Durante milésimos de segundo, ou em medidas fora do tempo, o meu cérebro não se inflamou de pensamentos. A minha epidemia privada hesitou. E quando voltei a pensar quis desafiar as leis e códigos com que estou programada. Quis desafiar-me. Mas a minha racionalidade doentia vence sempre. E eu fico sem saber se ganhei ou perdi.
Sou um bicho de sete cabeças. Todas servem para pensar. Não, sete não. Mais. Ainda há mais. Nunca tem fim. Não vai acabar. Não há espada que mate este estar. Vou ficando. A manhã acabou de raiar. À minha volta todos dormem. Sento-me na varanda. Subo o parapeito, pés no telhado. A luz não me incomoda, mesmo acabada de acordar. Deixo a pele do rosto absorver os raios de sol. Fumo um cigarro enquanto penso. E trauteio uma canção. Baixinho, porque gosto do mundo adormecido. Penso na tua beleza e espero que não tenhas noção. Porque é assustadora e tu pareces ter os pés assentes no chão. Lembras-te dos teus sonhos quando acordas? Hoje lembrei-me de ti. Desculpa, queria dizer que não me esqueci.

domingo, 20 de janeiro de 2008

É isto que sinto no meu labirinto.

Perco-me aqui. A luz não é muita e eu não sei o caminho para voltar. Já me embrenhei demasiado. Já fui demasiado fundo. Já me perdi. O meu passo é firme e decidido, vou em frente, mas não sei para onde estou a caminhar. Vou como cega. Não sei onde vai dar esta rua. Cá fora é tudo igual. Tudo igualmente cansativo. Mas há qualquer coisa que brilha algures e é para lá que quero ir. Quero entrar nesse brilho mas às vezes pergunto-me se não é debaixo da pele que devia procurar. Se tenho uma porta ainda não descobri como se abre. Por um momento tremi sem ser do frio, embora o ar me arrefeça. Acho. Talvez fosse tudo mais fácil se não existissem palavras. Ou talvez isso me deixasse imóvel. Mas as que tenho dentro de mim são demasiadas, em torrentes ininterruptas, abruptas, cruéis, dolorosas. Como se nas veias me corressem pedaços de vidro. Pedaços de qualquer coisa estilhaçada. Ou qualquer coisa ainda por nascer. Talvez ainda nem saiba o meu nome. Só tenho palavras debaixo da pele. Quase só. Sou como uma torneira estragada estupidamente à espera de conserto. Não há. Por isso deixo-as correr em silêncio. À espera. Queria extraí-las todas de dentro de mim, com uma precisão cirúrgica. É isso que tento. Ou talvez o esforço seja ridiculamente ínfimo. Não gosto de mentir. Eu já disse que não sei onde fica a porta. Só nunca mo disse olhando-me nos olhos. Não há espelho onde isso caiba. Vou virar aqui. Talvez seja por aqui. Continuo sem saber onde estou. Não reconheço nada. Ou recuso-me a reconhecer. É tudo novo e desconhecido e é tudo velho ao mesmo tempo. Fecho os olhos durante mais tempo que o normal quando pestanejo. É que me cansa o que vejo.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Bem-vindo, viajante.

Senta-te e descansa os olhos nas minhas palavras. Que elas te pacifiquem. Que tragam calma ao teu turbilhão. Ou que façam mover os êmbolos parados e ferrugentos do teu coração. Que te façam nascer ou te deixem morrer. Que possas sorrir ou que te levantes e saias. Que te coces preguiçosamente ou que bocejes sem pudor. Que te enoje, que te comova. Que abra uma ferida qualquer ou tempere a que já aí estava. Dá um murro. Suspira. Olha por cima do ombro. Que se te embacie o olhar. Que se te suavizem as palmas das mãos. Toca nos teus lábios. Afaga um joelho. Descalça-te. Despe-te. Tapa-te se ficaste com frio. Arrepia-te e logo a seguir transpira, do calor. Que te dê vontade de foder. Qualquer coisa. Merda, reage porque eu não posso sair daqui para te bater.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

With great power comes great responsability, já dizia o tio Ben.

Suspiro atrás de suspiro, ergui um muro de lamentações. Quatro paredes de tijolo em meu redor. Esqueci-me da porta e descurei as janelas. Mas ainda posso olhar para cima e substituir mais um suspiro por uma inspiração profunda. Quando quiser posso saltar.
Nunca ninguém me disse que o mundo é bonito, fui eu que decidi. Fui eu que fiz os meus filtros. Ninguém precisou de me ensinar a sorrir. Sempre me deixaram escolher. Eu escolhi quando trocar de direcção. Eu escolhi quando voltar atrás. Eu escolhi quando parar. Eu escolhi quando sonhar. Eu escolhi o que era para sempre e o que tinha de acabar. Fui eu em tudo. Estive sempre de olhos abertos sem me dar ao luxo de pestanejar porque assim o quis. E quando o peso da responsabilidade foi tanto que me senti esmagar também gatinhei, rastejei um pouco até. Que me importa esfolar os joelhos ou sujar as palmas das mãos? Depois passa. Já passou. Está a passar agora mesmo enquanto escrevo. Sim, o poder é meu e é grande. Sinto os meus nervos esticar. Não tenho limites. Se quiser posso voar. Mas não quero. Não. Gosto da minha calma e nem costumo arrastar os pés. Mas se for preciso arrasto. E se for preciso choro e faço doer. E dói e arranha a garganta quando grito. Mas grito se tiver de ser.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Eu sei.

Eu sabia. Sempre soube. Sabia da fragilidade do coração. Sabia da natureza do amor. Sabia das consequências dos actos. Sabia das mentiras. Sabia a verdade. Sabia que os rios não secam de repente. Sabia que a chuva vinha das nuvens. Sabia que o chão podia tremer. Sabia que o meu castigo seria ser esquecida. Eu sabia, eu sabia. E foi por saber que doeu ainda mais a dor que infligi. Foi por saber que fugi. E agora sei que não deixa de arder. Sei que a cicatriz não existe porque a ferida nunca chegou a fechar. Nunca deixou de arder. Acumulo sal nos cantos da boca e sei que não tenho o direito de lavar o rosto. Sei que não tenho o direito de ainda desejar, mesmo às escondidas.
Sei tanto, tanto, tanto.
Mas dou por mim ainda a fazer as mesmas perguntas, numa repetição exaustiva. Incansavelmente. Porque é que há tanto tempo atrás, da última vez, engoli a poção da invisibilidade para não me veres tremer, para não me veres deitar no chão, para não me veres cair, para não me veres gritar, para não me veres arrastar os pés em silêncio, para não me veres fugir outra vez, para não me veres esconder as lágrimas, para quê? Ainda conheço a tua nuca mas mesmo quando sei que não és tu permito-me duvidar por uns instantes, embriagando-me no prazer culpado que a tua presença fantasma me traz. Porquê? Leio as cartas que nunca chegaste a enviar. Ouço as palavras que nunca cheguei a dizer. Repito-as baixinho ou para dentro, conforme estou sozinha ou não. Para quê? Pergunto-me se ainda tens a mesma maneira de sentir, a mesma maneira de olhar. Ainda somos iguais? Ou já mudámos demasiado? Os rumos podem ser assim tão cruéis com a essência? Porque não me calo por dentro como por fora? Ou porque não falo do que sinto? Porque não te faço lembrar? Ou porque não esqueço também? Eu sei... É o meu castigo. Há-de durar tão para sempre quanto eu.
Estamos mortos há tanto tempo mas nunca parámos de ressuscitar sem que no entanto estejamos alguma vez realmente vivos. Está tudo na minha cabeça, eu sei.
Nunca tive dúvidas no que te diz respeito. Bastou a primeira palavra para saber.