terça-feira, 9 de maio de 2006

Equinócio

Ela era uma forasteira. Chegou à cidade num dia de sol, vinda ninguém sabe de onde nem porquê. Trazia apenas uma mochila às costas, com os seus escassos pertences. Vestia umas calças de ganga e uma blusa de verão, bastante puídas, e calçava umas botas castanhas de montanhismo, cobertas de pó. Os seus cabelos longos e escuros, voavam com o vento, soltos e em desalinho. Era bonita. O seu ar de aventureira gerou desconfiança mas o mistério que trazia consigo despertou a curiosidade geral.
A única pessoa com quem foi vista a falar foi com a dona da casa do fim da rua. Era uma casa grande com um lindo jardim, rodeada de plátanos. A dona da casa era uma senhora elegante, de voz suave, com os seus sessenta ou setenta anos. Usava os cabelos brancos apanhados num bonito rolo no alto da cabeça e tinha uns olhos sábios, azuis e bondosos. Quem sabe se elas já se conheciam? Podiam até ser familiares distantes. Mas também podiam ser apenas duas desconhecidas até ao momento em que foram vistas juntas.
- É com o meu noivo que deves falar. - foi a resposta que a senhora deu à rapariga. Não se sabe qual seria a questão. Não se sabe o que ela pretendia naquela tarde de sol em que chegou à cidade com o mundo reflectido no castanho dos olhos.
A rapariga foi ao encontro do noivo da dona da casa do fim da rua. Ele era um homem de ciência, nos seus trinta e alguns anos. Usava uns óculos de lentes grossas que lhe escondiam os olhos verdes. Foi através deles que a viu. Linda e perturbante. A calma dela e o seu sorriso constrangedor provocaram-lhe um estranho efeito. Como se ficasse com febre de repente. Talvez fosse do sol forte, talvez fosse da mudança de estação. Pediu-lhe que ali aguardasse alguns momentos, enquanto ia falar com a sua noiva. Para confirmar alguma coisa, talvez. Doeu-lhe a surpresa com sabor de desilusão que leu nos olhos dela. E deixou-a só. Se se ia casar era por amor. Que dúvida restava, então?
A jovem ficou sozinha na estranha divisão. Era um laboratório e ao mesmo tempo era escritório, sala, quarto, biblioteca. As paredes estavam forradas de estantes que para além de centenas de livros continham objectos e instrumentos desconhecidos, que ela se entreteve a observar enquanto pensava na estranha personagem que acabara de sair. Ele tinha cabelos ruivos, compridos e escorridos até ao nível do queixo. E usava uma barba curta que ela tivera vontade de afagar. A bata branca que lhe chegava aos joelhos estava repleta de estranhas nódoas científicas e riscos de caneta.
Foi então que a sua atenção se desviou para a varanda. Era enorme e não tinha gradeamento. Era apenas um pedaço de chão ao ar livre. E encontrava-se lá um telescópio apontado ao céu que estava naquele momento repleto da mistura de tons quentes do poente. No momento em que ela se aproximou para ver melhor aquele espectáculo arrebatador que a natureza lhe oferecia, levantou-se um vendaval tremendo. O vento uivava, gritava, relinchava assustadoramente. Uma rajada empurrou brutalmente a rapariga para fora da varanda e ela ficou pendurada apenas pelos braços, à altura de dois andares.
Foi nesse instante que ele entrou, logo tomado pelo pânico. Caía um dilúvio. A tempestade destruíra o interior do laboratório (tinha até arrancado pela raíz os plátanos da casa do fim da rua) e as estantes caídas bloqueavam-lhe a passagem. Tentou desesperadamente empurrar os obstáculos que o separavam da rapariga e o impediam de a salvar. Ela riu do absurdo da situação e no momento em que ele conseguiu passar para correr até ela, veio nova rajada de vento que a elevou. Como se voasse, ela pedalou no vazio e foi impulsionada para os braços dele.
- Vês? Nem tudo é ciência. Isto agora foi magia.
Ele ajudou-a a despir as roupas encharcadas e afastou-lhe o cabelo dos olhos. Indicou-lhe o quarto de banho, onde podia tomar um duche quente. Mas ela não se moveu e continuou a fixá-lo. Lentamente, começou a desapertar-lhe os botões da bata suja e beijou o cientista incrédulo.
Fizeram amor no meio do caos que os rodeava, e foi como se o mundo fizesse sentido outra vez. Durante os momentos em que estiveram unidos naquela dança carnal em que a chuva que entrava pela janela aberta lhes fustigava os corpos enleados, o cientista fez a maior descoberta da sua vida. Descobriu o amor. Era diferente do carinho, da amizade, da admiração e dos outros sentimentos bonitos que nutria pela sua noiva. Ele desejava esta rapariga como nunca pensara que se podia desejar alguma coisa. Era luxúria, era paixão. Ele queria protegê-la de todos os males e cuidar dela. E sentia-se vulnerável perante o seu olhar. Era amor, enfim.
E quando ambos atingiram o auge das suas paixões, escutaram um estrondo pavoroso e inconfundível. Também vinha de cima mas não era um trovão. O cheiro da pólvora e do sangue não lhes deixou lugar para dúvidas. Ambos sentiram o mesmo projéctil penetrar-lhes as carnes, quase em simultâneo. Primeiro ele, depois ela. Tinham sido assassinados pela traição. E sem desfazer o abraço das suas pernas em volta da cintura dele, ela disse:
- Se sobrevivessemos, ficavamos com uma cicatriz para nos recordar a nossa primeira noite de amor...

4 comentários:

mj disse...

Leio-te com o mesmo prazer com que como um bolo de chocolate com recheio de brigadeiro ;)
Que romantismo tão fervilhantemente trágico, bem como se quer!
Fico à espera do teu primeiro romance; quero ir pra fila de autógrafos.

gros bisou, ma cher Suh!***

Anónimo disse...

God...por este andar quero mesmo um romance teu nas minhas mãos!O romantismo latente...o trágico...isto para um adorador de Shakespeare soa a tentação...
Mas mais que a beleza da história e da escrita, a mensagem. A paixão, o calor do momento, a luxúria. Adorei. E visualizei cada pedaço de cenário, cada personagem. Vivi no meu imaginário esse dia louco. E soube bem!

Beijo*

Catarina disse...

Adorei a estória:P
Como só tu sabes escrever e descrever :)
Continua!
Miss U*

Anónimo disse...

Só uma simples frase Suz: EU SENTI! =]

Doru-te muito
e tu sabes disso!
Só não encontro o fundo... Mas, afinal de contas, que fundo é esse?