terça-feira, 15 de março de 2011

Por acidente.

As caras confundem-se no nevoeiro, o que não tem importância porque sei exactamente onde está cada uma. Não está frio mas sinto alguma coisa a doer-me nos ossos. Só faço mover os meus olhos mas o resto move-se com eles. Estou por fora de mim e vejo o meu sorriso incontrolável. E é de mim que me estou a rir por estar fora de controlo. Sou tão engraçada quando não sei o que fazer, quando o meu corpo se move sem eu lhe pedir. E há qualquer coisa nesse movimento, esse sentimento de não poder parar mesmo que queira, que me faz querer continuar. Somos incansáveis e terrivelmente belos. Somos a coisa verdadeira, e isso brilha cá para fora. Os olhos que sorriem desfocados ora se fecham, ora olham para mim. Tenho o coração cheio dessa beleza e desejo beijar olhos de todas as cores. Os nossos cabelos estão cansados do fumo dos cigarros e eu gosto de os afagar e dizer-lhes que vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem, cabelos, o resto não interessa assim tanto. Falo com as mãos porque elas dançam melhor que eu. Não sei ser feliz de outra maneira, preciso de ser feliz sem querer e a minha sorte é que tudo me parece acidental. As ideias belas surgem por acaso e eu gosto de me deixar afogar assim quando ouço uma palavra qualquer que de repente tem mais significado do que devia. Porque não hei-de sentir o silêncio que nunca se concretiza como se fosse o prémio prometido e merecido? No fim de tanta coisa poderemos calar-nos finalmente, gozar a imobilidade total e finalmente, finalmente sermos vazios. Por acaso, porque calhe, porque sim, acidentalmente, só isso. Desta vez não precisamos de ter razão para sorrir.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Antílope

Ah, por dentro, por dentro, de dentro.
Sempre para dentro, para o umbigo.
É na barriga que se acumulam as sensações.
Por dentro.
Tenho a barriga cheia de emoção.
Trinco pastilhas para a azia,
para apagar o fogo que me consome por dentro,
mas não se extingue.
Custa-me não confundir uma coisa com a outra.
É com esforço que separo o que é corpo do que não é.
Mas nunca chego a saber se não é.
Eu acho que é.
É físico, isto que sinto.
Sinto com o corpo.
São células e coisas científicas.
São bocados físicos de mim que ardem e se contorcem,
de emoção.
Emoção, sensação, impressão.
Coisas que sinto de forma não completamente imaginada.
Talvez isto inche quando chega ao cérebro.
Talvez ganhe dimensão com as ideias que nascem da minha barriga.
Proporcionalmente.
E as emoções ganham quase uma qualidade simétrica, geométrica, quantificável.
Hoje sinto na barriga a emoção equivalente a um antílope.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Do saber esperar.

Às vezes penso que vou esperar para sempre. Gabo a mim mesma a minha enorme paciência mas até eu tenho momentos de dúvida. Às vezes tenho vontade de desistir, vontade de esquecer, vontade de ser egoísta para sempre. Às vezes quero procurar um prazer simples, sem quaisquer intenções nobres à mistura, sem ser maior do que ninguém, sem as presunções de uma moralidade auto-imposta. Esta vigilância constante cansa-me. É difícil ter bons sentimentos quando os faço durar tanto. A solidão torna-se confortável ao fim de algum tempo e o amor é de facto o lugar mais estranho de todos. Quando chega ao fim sinto alívio porque posso voltar a mim, voltar para mim, ao meu egoísmo, à minha solidão confortável, ao meu normal.

Claro que as leis universais não se aplicam a mim. Nem tudo se transforma. Há coisas que se perdem. Eu podia dizer que o grande amor que tenho dentro de mim se transforma nestas palavras e por isso não se perde e é valioso. Mas seria mentira. Também podia dizer que são dor. Mas também não seria verdade. A minha dor já deixou de ser dor há muito tempo e agora é apenas nostalgia. As palavras são o que são. São a minha ficção egocentrada.

Isto não quer dizer que eu não seja feliz. Sou talvez uma das pessoas mais felizes que conheço. E eu conheço-me bem, que não restem dúvidas disso só porque às vezes ainda me consigo surpreender. E mal posso esperar pela próxima grande surpresa. Mal posso esperar pelo momento em que vou perder a paciência, o momento da explosão, do desastre, da fúria devastadora, da revolução. É por esse momento de revolta contra mim mesma que espero. Pacientemente, espero pelo momento em que não vou esperar mais.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Ser Humano

É neste estranho estado que tudo acontece.
É nesta estranha posição que as coisas vão ao lugar.
É neste ritmo incerto que os pensamentos se alinham.
Funções vitais tão irregulares como o espírito.
Ou como a mente.
Ou como se deva dirigir-se-lhe.
Ao que é vital mas não orgânico.
Dores que se confundem.
Órgãos internos danificados.
Não.
Corrijo.
Órgãos internos defeituosos.
As formas estão trocadas.
O que devia ser redondo é achatado.
Parcialmente achatado.
Uma coisa funciona mais devagar do que devia.
Outra coisa atropela-se a si mesma.
Por dentro, tudo aos tropeções.
Por fora, os relevos alteram-se.
Por dentro, o que é carne, é real mas apenas imaginado.
Por fora, o que é carne, é apenas real.
A pele faz as vezes de cobertor.
Mas não esconde nada.
As unhas e os cabelos fazem doer enquanto crescem.
Estranhamente, é uma metáfora.
Os dias passam e somam-se.
Os corpos vão-se somando.
Subtrai-se a diferença.
Clarifico.
Subtrai-se o que faz diferença.
Conta simples.
Resultado estranho.
Sentem-se os dias a sair dos corpos.
Vêem-se.
E como tudo fica claro assim.
É estranho ser humano.

sábado, 20 de novembro de 2010

Bom dia, e um sorriso.

Bom dia, e um sorriso. Bom dia, sorriso. Mais um. Passo rápido, às vezes abrando para sorrir melhor, outras não é necessário, sorriso veloz. Bom dia e um sorriso ao sair, bom dia e um sorriso ao entrar. E ao sair outra vez. E ao entrar, se lá está alguém. Às vezes olá em vez de bom dia. Não importa. O que conta é o sorriso. É nele que está o segredo. É nele que está a urgência. Sorrir a alguém, não importa quem, sorrir a quem não conheço. Como se os outros precisassem mais do meu sorriso do que eu mas eu ganhasse uma recompensa qualquer. E há qualquer coisa que o meu sorriso transporta até à outra pessoa, não importa quem, e há qualquer coisa que volta para mim no sorriso dessa pessoa. Não podemos guardar os sorrisos dos outros, é preciso devolvê-los. Mas receio esquecer-me de algum. Terei esquecido algum sorriso? Terei roubado o sorriso a alguém sem o saber e agora não sei de quem é para o poder devolver? Terei roubado o sorriso a alguém por maldade e depois esquecido que o guardei porque não gosto de pensar que sou má? Alguém terá ficado com um sorriso meu e se esqueceu de o devolver, ou não teve tempo, ou não viu, ou não percebeu que era a sua vez, ou não sabia como, ou teve medo, ou quis ficar com ele por qualquer razão, porque sim, porque não? E começo a pensar que me faltam bocados, e que esses bocados andam perdidos nos sorrisos, na rua, nos olhos das pessoas, em segredo. E tento desvendar essas coisas, à cautela, e procuro, com um sorriso, como quem não quer a coisa, mas quero, quero sorrir, como se disso dependesse a minha vida, como se no dia em que eu não sorrir a ninguém pudesse ser o dia em que vou morrer. E quando chego fecho a porta e sei que não estou a sorrir, vou à procura de um espelho e sorrio para mim e devolvo o sorriso a mim própria ao mesmo tempo e há outra vez qualquer coisa que passa para trás e para a frente ao mesmo tempo e sou apenas eu, sou eu que passo para trás e para a frente, às voltas comigo mesma, à procura de qualquer coisa que não sei onde perdi ou sequer se cheguei a encontrar, se cheguei a possuir, porque não sei o que é, nunca vi, nunca percebi, mas faz-me falta não sei porquê. Não sei explicar o porquê desta necessidade mas faço a vontade a mim própria e continuo a sorrir, todos os dias a sorrir, como se disso dependesse a minha vida, com a sobrevivência no sorriso, a vida. Mas quando penso assim nos meus sorrisos, quando a necessidade não é de sorrir mas de explicar o porquê da necessidade de sorrir, o porquê da vontade de sorrir, o porquê de sorrir tanto, não consigo evitar, fico um pouco triste. Não consigo evitar, porque vejo estranheza em tudo.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Poema de não conseguir parar

não consigo parar
é como se a qualquer momento
as palavras fossem rebentar
boca fora
e eu não as pudesse travar
vejo-me tentar
cobrir a boca com as duas mãos
olhos esbugalhados
pânico de o dizer
pânico de me ouvir
pânico de que me ouças
ou de que não entendas
de que me saiam apenas gemidos abafados
entrecortados
ou gritos ininteligíveis
esganiçados
se a luz do dia mostrar o que eu quero esconder
(não, não
por favor, não)
está-me nos olhos nebulosos
prestes a cair
a todo o momento
está-me nas mãos nervosas
prestes a saltar
a todo o momento
e eu não consigo
não consigo parar
fico num coma simulado
para não mostrar nada
para não denunciar nada
porque qualquer movimento é perigoso
qualquer palavra é potencialmente desastrosa
preciso fazer-me de morta
para não ser comida viva
pelas palavras
elas tentam engolir-me
submergem-me
afogam-me
e não são as palavras
é o que está por detrás delas
em silêncio
no escuro
mas quer sair cá para fora
o silêncio quer sair
o escuro quer sair
cabeça fora
palavras fora
boca fora
olhos fora
mãos fora
corpo fora
tudo fora
morro aqui

Poema de um breve sorriso

sorri
enquanto podes
brevemente deixarás de ter coragem
brevemente entrará o negro
brevemente poderás ver
a verdade por detrás do sorriso
a inocência enganosa
a doçura perversa
as garras cor-de-rosa
as presas afiadas
os espinhos à flor da pele
o negrume dos olhos
por entre o cândido verde
está no centro
o núcleo incendiário
sedento de devastação
está por dentro
a teia de arame farpado
os nós sinistros
que não vêm nos livros
ou em qualquer ilustração
brevemente os cabelos ao vento
estarão carregados de electricidade
brevemente as delicadas mãos
estarão crispadas nos braços de uma cadeira
brevemente esse sorriso
vai esgotar-se
vai esgotar-me
vai esgotar-se-me
até quando ficarás sem ver?
até quando poderás não sentir?
até quando acreditarás não ser?
até quando poderás sorrir?
brevemente
brevemente, coração.

Gelo

gelo
à superfície
gelo
cola e queima
ousaste tocá-lo
e não te podes libertar
ou rasgas a tua pele
a tua pele pela tua vida
a pele pelo coração
gelo
arde e corta
queima e rasga
prende e mata
chora pela tua vida
chora pela tua pele
salva a tua pele
e chora
para te libertares
o calor das lágrimas
é a única coisa
a salvar o teu coração
do gelo

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

As coisas simples.

Quando eu era criança, tinha várias formas de me entreter. Como todas as outras crianças descobria o fascínio das coisas simples. O meu simples respirar era uma coisa complexa e deslumbrante. Podia inspirar depressa ou devagar, experimentando o excesso ou a falta de oxigénio, podia respirar pelo peito, pela barriga e até pela cabeça ou pelos pés. Dormir também não era apenas dormir. Sentia-me grata pela facilidade com que adormecia e por esta ser igual àquela com que acordava. Antes de fechar os olhos, deitada, sentia o sangue percorrer o meu corpo todo, incrivelmente feliz por poder senti-lo, no escuro. De manhã, surpreendia-me com os sonhos extraordinários que tinha sonhado enquanto dormia. E por tudo isto, gostava de dormir. Era algo de grandioso, dormir.
Agora, às vezes, deixo-me afundar na complexidade de algumas coisas. Às vezes, perco-me numa espécie de labirinto de mim mesma. E ouço alguém dizer que gostava de voltar ao tempo em que as coisas eram simples. E eu penso, quando é que as coisas alguma vez foram simples? Se o mais pequeno gesto, a mais insignificante realidade, estiveram sempre carregados de um significado esmagador? Se respirar nunca foi apenas respirar nem dormir foi apenas dormir? Se eu nunca pude fazer nada sem pensar, aterrorizada, nas consequências irremediáveis que iria sofrer? Como se segurar num copo de determinada maneira pudesse mudar a minha vida para sempre. E pode. Claro que pode.
Eu sei que nunca haverá um tempo em que as coisas serão simples. E não é isso que me assusta. A não ser nos raros momentos de fraqueza. Porque tudo se torna tão mais interessante. E torna-se tudo tão valioso e insubstituível. Mas é que, às vezes, essas em que tenho medo, essas em que racionalmente admito a minha fragilidade, às vezes receio não conseguir sobreviver à intensidade de esperar que o metro chegue, ou que o meu coração ceda enquanto mexo o açúcar no fundo de uma chávena.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Poema da página em branco.

Lembras-me uma página em branco.
Ou esta página, quando estava em branco,
lembrou-me de ti.
Não creio que seja a página em si.
A página não é importante,
nem o facto de estar em branco,
nem o que escrevi entretanto.
O que interessa aqui
é que me lembrei de ti.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Poema do equilíbrio no Mundo.

Há quotas para tudo,
neste Mundo.
Talvez até as gargalhadas estejam contadas
e inequivocamente distribuídas.
De uma maneira ou de outra,
as quotas têm de ser preenchidas,
todos os dias.

Curei as tuas feridas.
Mas ao trazer-te paz
precisei de sofrer para apaziguar as quotas do Mundo.
Por me rir contigo
fui obrigada a chorar sozinha.
Por sorrir quando te vejo
o meu olhar sobre o rio é triste.
Porque descobri a cor dos teus olhos,
agora as flores não me cheiram a nada.
Mas troco qualquer perfume
por um olhar teu.

Tenho tanto para dar
que me assusta o que posso perder.
Se eu beber das tuas lágrimas
poderão elas matar-me?
Talvez o que tu tens para me dar
possa equilibrar a quota da coragem
que eu ainda não preenchi.
Ou talvez tudo isto
seja um pequeno preço a pagar
por me perder em ti.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Poema de atormentar o coração.

Sinto o meu coração a dilatar e a encolher.
Sinto-o contrair e sinto-o expandir nas minhas mãos,
como um brinquedo de borracha.
E o meu coração é maleável, é moldável.
Brinco com ele como quem brinca com as palavras
imaginando sentir coisas, ensaiando tentativas,
como se lhe atasse fios invisíveis
para o controlar, para o manipular.

Assusto-me.
Tenho medo de mim e do meu coração mutante.
Sinto o meu corpo todo pulsar,
no centro o coração, como uma bomba-relógio,
como se o meu tempo fosse acabar a qualquer momento
e esse momento estivesse cada vez mais perto,
cada vez mais perto,
cada vez mais perto,
cada vez mais perto,
- e está, eu sei,
aflitivamente, sei -
sem que eu tivesse tempo de sentir tudo o que queria.

Nunca tive tempo,
não me deram tempo,
não me deram o que eu queria,
não me deixaram sentir,
não me fizeram sentir
e eu perdi tempo,
perdi-me,
não me deixei sentir,
não deixei que me sentissem
e não deixo,
nunca,
eu sei.

Parece que esgotei o meu sentir
nuns quantos momentos da minha vida inteira,
e que já não posso voltar a sentir-me assim
porque esses momentos já passaram.
E eu vejo os lugares, vejo as pessoas,
e é como se contasse uma história a mim mesma,
antes de ir dormir.
Uma história de quanto eu amei, de quanto eu sofri,
de quanto eu chorei, de quanto eu vivi,
de quanto eu gritei de todas as vezes que morri.
De amor.

E o meu coração enrola-se a um canto
e quer dormir, mas eu não permito,
não lhe dou sossego, não o deixo em paz.
Obrigo-o a pensar. Analiso-o
e tento fazê-lo fazer-me compreender
e tento fazê-lo compreender-me,
a mim e às minhas razões,
chocalho-o e agito-o no ar,
e grito com ele e faço-o chorar,
digo-lhe a verdade e forço-o a ver.
E escrevo-lhe poemas para ele não se esquecer.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

De me lembrar das coisas.

Estive a pensar em ti, mais uma vez, e a lembrar-me de coisas pequenas, de pormenores soltos. Gostava que pudesses fazer o mesmo. Gostava que tivesses uma memória igual à minha, para te lembrares de tudo o que eu disse e com que intenção. Para te lembrares do que eu tinha vestido quando o disse e quais os gestos que fiz. Acho que se tivesses uma memória como a minha me terias amado mais. Talvez me tivesses conhecido melhor, compreendido melhor. Imagino que te lembres vagamente do meu cheiro e da cor dos meus olhos. Mas queria que te lembrasses do resto. Que as minhas palavras te ressoassem nos ouvidos e no coração. Não eram apenas pistas, não eram simples divagações. Eram ideias claras, mapas, bússolas, barómetros. Desenhei com nitidez tudo o que sentia para tu poderes ver. Mas não te consegues lembrar. Ficou-te uma vaga ideia. E eu lembro-me de todas as revelações, de todos os indícios, de todos os pressentimentos, de tudo o que tentaste dizer e tudo o que eu pude adivinhar em reticências inconsequentes. Talvez por isso eu soubesse amar tanto e tão bem. Talvez por isso eu saiba amar melhor. Sinceramente.
Claro que também me lembro de coisas tristes, mas depois de terem passado e serem apenas memórias, fazem-me sorrir. Mesmo as tristes. E claro que às felizes também sorrio. É por isso que às vezes pareço tola, de tanto me rir sozinha. É que me lembro de tudo e há sempre qualquer coisa a acordar em mim a cada momento. E eu rio, apenas. E é bom, e eu gosto de me lembrar de ti. Mas se me lembrar mais do que um bocadinho, se tiver tempo para me ficar a lembrar de ti uma tarde inteira, o sorriso torna-se amargo, azeda-me na boca. Porque sei que me lembro sozinha. E já era assim antes. Antes do fim. O fim, que nunca é bem um fim, tu sabes. Comigo nunca nada é uma coisa só. Talvez por isso te tenhas perdido, nas bifurcações. Quando me doer a cara de tanto me lembrar de ti, hei-de procurar-te, outra vez. Para te fazer lembrar um bocadinho, mesmo sabendo que a ti te custa. Mas é importante que lembres. Para que as coisas não percam o sentido. Para que saibas porquê. Para que compreendas melhor. Para que compreendas que o teu amor é simples de mais para mim. Para que compreendas que não basta amares o meu cheiro e a cor dos meus olhos, ou uma vaga ideia de mim. Mas mesmo que não compreendas, eu perdoo-te. Já perdoei antes. E vou continuar a lembrar-me de quem tu és debaixo disso tudo, mesmo que já não te lembres de me teres mostrado.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Poema de sentir qualquer coisa.

É nestes instantes,
às vezes tão rápidos que são
quase imperceptíveis,
às vezes tão longos que são
quase intoleráveis.
É nestes instantes,
sem sons e sem histórias,
sem vozes nem distracções.
É nestes instantes
que me assaltam as tuas imagens confusas,
em borbotões.
Nestes instantes,
elas roubam qualquer coisa.
De mim.
Nestes instantes,
elas deixam um vazio qualquer.
Em mim.
Nestes instantes,
fico despojada
e sem armas.
Contra ti.
E então
qualquer coisa cresce,
qualquer coisa se alastra,
qualquer coisa me invade,
ocupando o espaço vazio.
E então
fico perdida,
angustiada,
e tenho vontade de chorar
(e às vezes choro)
e sinto que o ar me foge
e sinto uma dor nem sei bem em que lugar
e quase tenho vontade de sorrir
mas não chego bem a tê-la
porque quando dou por ele
o sorriso já lá está,
invadiu-me,
alastrou-se,
cresceu em mim.
E não é bem um sorriso,
não é bem uma angústia,
nem é bem uma dor.
É nestes instantes
que penso.
Nestes instantes
consigo sentir.
E então parece-me que percebo.
Isto podia ser amor.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Ser Poeta (é ser sombrio)

Ser Poeta é ser sombrio, é ser pior
Do que nos pensam! Desprezar como quem ama!
É ser indefeso e lutar como quem inflama
Em si a Coragem do mundo e não a Dor!

É ter de mil desejos o horror
Por não gostar sequer do que se deseja!
É ter cá dentro uma ferida que chameja,
É ter espinhos e um muro em redor!

É ter nojo, é ter medo de Infinito!
Por pele, os dias inertes e de marfim…
É reduzir o mundo apenas a um grito!

E é querer tudo, desnorteadamente…
E seres tudo, e nada, o que resta em mim
E cantá-lo fingindo que és toda a gente!

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Poema dos meus fantasmas

Nunca estive satisfeita
porque tive sempre medo
do que podia vir a encontrar.
Nunca nada me satisfez
porque nunca conheci tudo
do que há para encontrar.

Tive sempre medo de amar
porque podia descobrir
um amor mais verdadeiro.
Tive sempre medo de viver
porque podia descobrir
que desperdicei a vida.
Tive sempre medo de ser boa
porque podia descobrir
que podia ter sido melhor.
Tive sempre medo de vencer
porque podia descobrir
que nunca tive nada.
Tive sempre medo de sorrir
porque podia descobrir
todas as razões do mundo para chorar.
Tive sempre medo de chorar
porque podia descobrir
que podia ter sido feliz.
Tive sempre medo de ser feliz
porque podia descobrir
que era mentira.
Tive sempre medo de acreditar
porque podia descobrir
que estava enganada.
Tive sempre medo de duvidar
porque podia descobrir
que era tudo verdade.
Tive sempre medo de andar
porque podia descobrir
que devia ter corrido.
Tive sempre medo de correr
porque podia descobrir
muito onde tropeçar.
Tive sempre medo de dançar
porque podia descobrir
como pisar os meus próprios pés.
Tive sempre medo de lutar
porque podia descobrir
que não valia a pena.
Tive sempre medo de ter pena
porque podia descobrir
que era de mim.
Tive sempre medo de mostrar quem sou
porque podia descobrir
que sou feia.
Tive sempre medo de estar acompanhada
porque podia descobrir
que estive sempre sozinha.
Tive sempre medo de sonhar
porque podia descobrir
a verdade nos sonhos.

Como se tudo o que eu pudesse conhecer
fossem apenas fantasmas
do que podia vir a ser.
Ou do que é.
Mas nada é o que podia ser.
E é tudo meu.

Não és tu.
Sou eu.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Poema de escrever um poema

quero escrever um poema
que se escape de mim
que se escape de si
que me fuja das mãos
que me fuja das páginas
e que vá parar aos lábios de alguém que o diga
sem se lembrar de onde o leu
sem se lembrar de quem o escreveu
sem se lembrar de quem pensou que podia escrever
para alguém se lembrar do que escreveu
e que o diga por se lembrar das palavras
escritas e pensadas e fugidas
só porque elas querem dizer alguma coisa
diferente do que pensou quem as escreveu
mas que ocorrem à memória de quem as leu
e à de quem as ouviu quando ele as disse
e depois escreveu outras
que não são as mesmas
mas nasceram delas
e assim criando uma obra criadora por ela mesma.
e livre. uma obra livre.
como eu escrevi agora estas palavras
por ouvir alguém que não conheço
dizer alguma coisa
agora transformada nesta coisa,
nestas palavras que são livres,
que a partir do momento em que as escrevo
deixam de estar presas a mim.
que sejam livres
e eu liberte no papel
tudo o que tenho pensado e ouvido e lido
e tudo o que tenho para pensar e ouvir e ler
e tudo o que valha a pena ser lido e ouvido e repetido
e assim por diante
até que nada fique por dizer
nem por ouvir
nem por escrever.

domingo, 31 de maio de 2009

A morte sou eu.

Às vezes choro com sede de perda. Invejo aqueles que conheceram a morte e podem chorá-la. O meu vazio é a ausência de perda. Não gosto de lutar para que as coisas permaneçam perfeitas e iguais. Preciso de erros para reparar, de desgostos para superar. De lutar para ficar bem. Sou uma perfeccionista, insistentemente em busca de imperfeições para consertar. O que me move é o horror e horroriza-me a minha boa vida. Sou invadida por uma ansiedade, um prenúncio de devastação. Eu sei o que se segue. Vou matar qualquer coisa de bom para poder remediar esse erro. Para sofrer e poder lutar por ficar bem. Eu não sei canalizar as minhas pulsões. Sem morte não sinto vida. Não cresço. Fico egoísta, desejando a morte para poder viver melhor. E a morte sou eu. Porque estou aqui a respirar para nada e a chorar porque não estou triste.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Amo-te.

Às vezes gostava que fosse como nos sonhos, qualquer caminho que se siga é estranhamente certo e vai sempre dar a algum lugar, longe ou perto. Todos os gestos têm significados profundos, as palavras são misteriosas mas incisivas. São belos os meus sonhos, gosto de dormir neles. São confortáveis e quentes, como a minha cama. Gosto quando me tocam nos meus sonhos porque nunca me incomoda e só me toca quem eu desejo. A imagem do sorriso dele enche o ecrã da minha mente adormecida, o som da sua gargalhada divertida contagia a gargalhada que sinto no coração enquanto durmo. A mão que me afaga o rosto é grande e macia. As palavras ditas e trancadas no sonho, em segredo absoluto do mundo, enchem-me de esperança. Passo-lhe os meus longos dedos pelo cabelo, em retribuição, devagar. E fica tudo bem. Fica sempre tudo bem. Acordo com o telefone e respondo de voz estremunhada, arrastada, dolente. Não queria sair do meu sonho, revolto-me cheia de sono e de raiva. A voz que me fala, carinhosa, não é a mesma que sonhava há minutos, nem o sorriso, nem o cabelo, nem as mãos, nem as palavras. Não está comigo. O meu rosto contorce-se numa agonia silenciosa. A minha boca abre-se num grito mudo e ensurdecedor, e o quarto enche-se dele. Os olhos estão húmidos mas nenhuma lágrima se atreve. Já desliguei o telefone. A culpa já me pesa desde o segundo em que acordei. Tento voltar ao sonho, fechando os olhos com desespero, mas esta minha culpa é esmagadora e não mo permite. Por entre o meu esgar interminável, da minha boca entreaberta, escapa-se um gemido incontrolado. Dura apenas um segundo, logo abafado pelo lençol que mordo em soluços secos. Não faço um som. O coração dentro do peito dói-me e pesa como uma grande pedra aguçada. Às vezes penso que se me alimentasse melhor o sangue me correria mais fácil e fluidamente pelas veias. Dói-me cada momento de vida. Fixo o tecto e tento limpar os pensamentos, em imobilidade total. Volto a libertar os meus músculos e permito-me, não, obrigo-me a levantar. És tão forte. Não tenhas medo. Está um dia lindo lá fora. Amo-te. Sorri.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

tough love

girls deceive
and make boys believe
boys lie
and make girls cry

love hurts
and there's no way around it
but sometimes i wish
i was on the other side of it

boys cry
and make girls believe
girls lie
and make boys deceive

love is tough
but i am tougher
don't you be rough
or you're one dead lover

girls cry
and make boys lie

love is vile
but i love it
if you see me smile
just go with it

boys deceive
and make girls lie

love is cold
when my bed is empty
no hand to hold
no use for my warmth

girls believe
and make boys cry

i want to hurt love
like it hurt me
i want it dead cold
i'll show it villany

boys do something
that makes girls want to die
girls do everything
to pretend it's just fine

i can't decide wich way it goes
so i'll wrap it up
in few simple words

we all fucked up
and tied our own rope
but while there is love
there is still hope

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Fim de um Inverno.

No meio da confusão dos corpos era difícil distinguir onde estava a verdade. Fechava os olhos e era como se os mantivesse abertos. A sucessão de imagens que lhe cruzavam a mente, fazendo o sangue subir-lhe às faces, correspondia à velocidade frenética de movimentos que a rodeavam. Era apenas uma rua cheia de gente com pressa para passar, pouco se importando com os encontrões que dava ou recebia ou com os calcanhares que pisava; mas parecia um quarto fechado, de janelas embaciadas pelas respirações sincronizadamente ofegantes. Nunca uma multidão lhe parecera tão obscena. Nem mesmo os grossos e compridos casacos invernais conseguiam esconder a nudez insípida e desinteressante a que estavam condenados. Apenas o conforto de um rosto belo no meio da orgia de transeuntes lhe pode acalmar a repugnância. Caminhava como que acima da multidão. Em perfeição. E vinha a sorrir, muito ao de leve. Muito ao de leve, cruzou o ombro com o seu. Foi um roçar delicado, como o sorriso, mas o suficiente para que deixasse de lado o seu profundo desprezo pelo mundo, apenas por um instante. O seu coração dorido deixou de arder por um instante, só por constatar que ainda existia uma réstia de gentileza no mundo. Talvez valesse a pena respirar mais um pouco, talvez até encontrar o próximo sorriso perdido na rua que restaurasse em si a vontade de caminhar devagar. Mesmo sem abrir o guarda-chuva.

*

“If love is shelter/I’m gonna walk in the rain”

If Love Is a Red Dress (Hang Me In Rags), Maria McKee

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Apontamento

E de repente, fez sentido. Não era uma história simples, o que eu queria mostrar não eram as calamidades de uma tragédia de amor impossível. Era sobre o amor, sim, mas mais do que isso, era sobre como o amor é possível. E depois de todos os episódios dramáticos que me inundavam o cérebro percebi onde estava a razão. E o desafio de que sempre fugi. O desafio pronunciado há muitos anos, nas palavras tímidas de um amigo que sempre soube perceber o que era, até mesmo antes de mim. "Nunca vais ser feliz enquanto não conseguires escrever quando estás feliz. " Soavam a profecia, pareciam impossíveis de cumprir. Martelavam-me as ideias de tempos a tempos. E depois de tanto tempo, houve um momento de clareza. Foi a primeira história, a primeira de todas, a que me fez querer continuar, a que pela primeira vez me fez sentir aquela coisa indefinível que é sede e saciedade ao mesmo tempo, que é gloriosa mas aterradora, que me deixa num limbo entre o desespero e a esperança. A história inacabada: “Eles estavam felizes e eu não fui capaz de escrever mais.” Eu sabia que a história era trágica, afinal era da minha cabeça, e por mais que eu gostasse de dizer que o que sentia era piedade (pobres personagens a quem vou roubar a felicidade que eu mesma ofereci), a versão sincera obriga-me a admitir que era inadequação. Afinal, nunca tive qualquer espécie de escrúpulos no que diz respeito a finais cruéis. Agora sei que o final trágico que eu tinha previsto, pode ser apenas o início de algo muito maior. E finalmente, a primeira história ganhou um objectivo, já não está irremediavelmente perdida. Ao fim de tantos anos, encontrei o sentido que lhe faltava. Finalmente, pode deixar de ser mais uma história de amor trágico e impossível. Será a primeira história feliz.