quarta-feira, 21 de julho de 2010

Poema de sentir qualquer coisa.

É nestes instantes,
às vezes tão rápidos que são
quase imperceptíveis,
às vezes tão longos que são
quase intoleráveis.
É nestes instantes,
sem sons e sem histórias,
sem vozes nem distracções.
É nestes instantes
que me assaltam as tuas imagens confusas,
em borbotões.
Nestes instantes,
elas roubam qualquer coisa.
De mim.
Nestes instantes,
elas deixam um vazio qualquer.
Em mim.
Nestes instantes,
fico despojada
e sem armas.
Contra ti.
E então
qualquer coisa cresce,
qualquer coisa se alastra,
qualquer coisa me invade,
ocupando o espaço vazio.
E então
fico perdida,
angustiada,
e tenho vontade de chorar
(e às vezes choro)
e sinto que o ar me foge
e sinto uma dor nem sei bem em que lugar
e quase tenho vontade de sorrir
mas não chego bem a tê-la
porque quando dou por ele
o sorriso já lá está,
invadiu-me,
alastrou-se,
cresceu em mim.
E não é bem um sorriso,
não é bem uma angústia,
nem é bem uma dor.
É nestes instantes
que penso.
Nestes instantes
consigo sentir.
E então parece-me que percebo.
Isto podia ser amor.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Ser Poeta (é ser sombrio)

Ser Poeta é ser sombrio, é ser pior
Do que nos pensam! Desprezar como quem ama!
É ser indefeso e lutar como quem inflama
Em si a Coragem do mundo e não a Dor!

É ter de mil desejos o horror
Por não gostar sequer do que se deseja!
É ter cá dentro uma ferida que chameja,
É ter espinhos e um muro em redor!

É ter nojo, é ter medo de Infinito!
Por pele, os dias inertes e de marfim…
É reduzir o mundo apenas a um grito!

E é querer tudo, desnorteadamente…
E seres tudo, e nada, o que resta em mim
E cantá-lo fingindo que és toda a gente!

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Poema dos meus fantasmas

Nunca estive satisfeita
porque tive sempre medo
do que podia vir a encontrar.
Nunca nada me satisfez
porque nunca conheci tudo
do que há para encontrar.

Tive sempre medo de amar
porque podia descobrir
um amor mais verdadeiro.
Tive sempre medo de viver
porque podia descobrir
que desperdicei a vida.
Tive sempre medo de ser boa
porque podia descobrir
que podia ter sido melhor.
Tive sempre medo de vencer
porque podia descobrir
que nunca tive nada.
Tive sempre medo de sorrir
porque podia descobrir
todas as razões do mundo para chorar.
Tive sempre medo de chorar
porque podia descobrir
que podia ter sido feliz.
Tive sempre medo de ser feliz
porque podia descobrir
que era mentira.
Tive sempre medo de acreditar
porque podia descobrir
que estava enganada.
Tive sempre medo de duvidar
porque podia descobrir
que era tudo verdade.
Tive sempre medo de andar
porque podia descobrir
que devia ter corrido.
Tive sempre medo de correr
porque podia descobrir
muito onde tropeçar.
Tive sempre medo de dançar
porque podia descobrir
como pisar os meus próprios pés.
Tive sempre medo de lutar
porque podia descobrir
que não valia a pena.
Tive sempre medo de ter pena
porque podia descobrir
que era de mim.
Tive sempre medo de mostrar quem sou
porque podia descobrir
que sou feia.
Tive sempre medo de estar acompanhada
porque podia descobrir
que estive sempre sozinha.
Tive sempre medo de sonhar
porque podia descobrir
a verdade nos sonhos.

Como se tudo o que eu pudesse conhecer
fossem apenas fantasmas
do que podia vir a ser.
Ou do que é.
Mas nada é o que podia ser.
E é tudo meu.

Não és tu.
Sou eu.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Poema de escrever um poema

quero escrever um poema
que se escape de mim
que se escape de si
que me fuja das mãos
que me fuja das páginas
e que vá parar aos lábios de alguém que o diga
sem se lembrar de onde o leu
sem se lembrar de quem o escreveu
sem se lembrar de quem pensou que podia escrever
para alguém se lembrar do que escreveu
e que o diga por se lembrar das palavras
escritas e pensadas e fugidas
só porque elas querem dizer alguma coisa
diferente do que pensou quem as escreveu
mas que ocorrem à memória de quem as leu
e à de quem as ouviu quando ele as disse
e depois escreveu outras
que não são as mesmas
mas nasceram delas
e assim criando uma obra criadora por ela mesma.
e livre. uma obra livre.
como eu escrevi agora estas palavras
por ouvir alguém que não conheço
dizer alguma coisa
agora transformada nesta coisa,
nestas palavras que são livres,
que a partir do momento em que as escrevo
deixam de estar presas a mim.
que sejam livres
e eu liberte no papel
tudo o que tenho pensado e ouvido e lido
e tudo o que tenho para pensar e ouvir e ler
e tudo o que valha a pena ser lido e ouvido e repetido
e assim por diante
até que nada fique por dizer
nem por ouvir
nem por escrever.

domingo, 31 de maio de 2009

A morte sou eu.

Às vezes choro com sede de perda. Invejo aqueles que conheceram a morte e podem chorá-la. O meu vazio é a ausência de perda. Não gosto de lutar para que as coisas permaneçam perfeitas e iguais. Preciso de erros para reparar, de desgostos para superar. De lutar para ficar bem. Sou uma perfeccionista, insistentemente em busca de imperfeições para consertar. O que me move é o horror e horroriza-me a minha boa vida. Sou invadida por uma ansiedade, um prenúncio de devastação. Eu sei o que se segue. Vou matar qualquer coisa de bom para poder remediar esse erro. Para sofrer e poder lutar por ficar bem. Eu não sei canalizar as minhas pulsões. Sem morte não sinto vida. Não cresço. Fico egoísta, desejando a morte para poder viver melhor. E a morte sou eu. Porque estou aqui a respirar para nada e a chorar porque não estou triste.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Amo-te.

Às vezes gostava que fosse como nos sonhos, qualquer caminho que se siga é estranhamente certo e vai sempre dar a algum lugar, longe ou perto. Todos os gestos têm significados profundos, as palavras são misteriosas mas incisivas. São belos os meus sonhos, gosto de dormir neles. São confortáveis e quentes, como a minha cama. Gosto quando me tocam nos meus sonhos porque nunca me incomoda e só me toca quem eu desejo. A imagem do sorriso dele enche o ecrã da minha mente adormecida, o som da sua gargalhada divertida contagia a gargalhada que sinto no coração enquanto durmo. A mão que me afaga o rosto é grande e macia. As palavras ditas e trancadas no sonho, em segredo absoluto do mundo, enchem-me de esperança. Passo-lhe os meus longos dedos pelo cabelo, em retribuição, devagar. E fica tudo bem. Fica sempre tudo bem. Acordo com o telefone e respondo de voz estremunhada, arrastada, dolente. Não queria sair do meu sonho, revolto-me cheia de sono e de raiva. A voz que me fala, carinhosa, não é a mesma que sonhava há minutos, nem o sorriso, nem o cabelo, nem as mãos, nem as palavras. Não está comigo. O meu rosto contorce-se numa agonia silenciosa. A minha boca abre-se num grito mudo e ensurdecedor, e o quarto enche-se dele. Os olhos estão húmidos mas nenhuma lágrima se atreve. Já desliguei o telefone. A culpa já me pesa desde o segundo em que acordei. Tento voltar ao sonho, fechando os olhos com desespero, mas esta minha culpa é esmagadora e não mo permite. Por entre o meu esgar interminável, da minha boca entreaberta, escapa-se um gemido incontrolado. Dura apenas um segundo, logo abafado pelo lençol que mordo em soluços secos. Não faço um som. O coração dentro do peito dói-me e pesa como uma grande pedra aguçada. Às vezes penso que se me alimentasse melhor o sangue me correria mais fácil e fluidamente pelas veias. Dói-me cada momento de vida. Fixo o tecto e tento limpar os pensamentos, em imobilidade total. Volto a libertar os meus músculos e permito-me, não, obrigo-me a levantar. És tão forte. Não tenhas medo. Está um dia lindo lá fora. Amo-te. Sorri.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

tough love

girls deceive
and make boys believe
boys lie
and make girls cry

love hurts
and there's no way around it
but sometimes i wish
i was on the other side of it

boys cry
and make girls believe
girls lie
and make boys deceive

love is tough
but i am tougher
don't you be rough
or you're one dead lover

girls cry
and make boys lie

love is vile
but i love it
if you see me smile
just go with it

boys deceive
and make girls lie

love is cold
when my bed is empty
no hand to hold
no use for my warmth

girls believe
and make boys cry

i want to hurt love
like it hurt me
i want it dead cold
i'll show it villany

boys do something
that makes girls want to die
girls do everything
to pretend it's just fine

i can't decide wich way it goes
so i'll wrap it up
in few simple words

we all fucked up
and tied our own rope
but while there is love
there is still hope

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Fim de um Inverno.

No meio da confusão dos corpos era difícil distinguir onde estava a verdade. Fechava os olhos e era como se os mantivesse abertos. A sucessão de imagens que lhe cruzavam a mente, fazendo o sangue subir-lhe às faces, correspondia à velocidade frenética de movimentos que a rodeavam. Era apenas uma rua cheia de gente com pressa para passar, pouco se importando com os encontrões que dava ou recebia ou com os calcanhares que pisava; mas parecia um quarto fechado, de janelas embaciadas pelas respirações sincronizadamente ofegantes. Nunca uma multidão lhe parecera tão obscena. Nem mesmo os grossos e compridos casacos invernais conseguiam esconder a nudez insípida e desinteressante a que estavam condenados. Apenas o conforto de um rosto belo no meio da orgia de transeuntes lhe pode acalmar a repugnância. Caminhava como que acima da multidão. Em perfeição. E vinha a sorrir, muito ao de leve. Muito ao de leve, cruzou o ombro com o seu. Foi um roçar delicado, como o sorriso, mas o suficiente para que deixasse de lado o seu profundo desprezo pelo mundo, apenas por um instante. O seu coração dorido deixou de arder por um instante, só por constatar que ainda existia uma réstia de gentileza no mundo. Talvez valesse a pena respirar mais um pouco, talvez até encontrar o próximo sorriso perdido na rua que restaurasse em si a vontade de caminhar devagar. Mesmo sem abrir o guarda-chuva.

*

“If love is shelter/I’m gonna walk in the rain”

If Love Is a Red Dress (Hang Me In Rags), Maria McKee

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Apontamento

E de repente, fez sentido. Não era uma história simples, o que eu queria mostrar não eram as calamidades de uma tragédia de amor impossível. Era sobre o amor, sim, mas mais do que isso, era sobre como o amor é possível. E depois de todos os episódios dramáticos que me inundavam o cérebro percebi onde estava a razão. E o desafio de que sempre fugi. O desafio pronunciado há muitos anos, nas palavras tímidas de um amigo que sempre soube perceber o que era, até mesmo antes de mim. "Nunca vais ser feliz enquanto não conseguires escrever quando estás feliz. " Soavam a profecia, pareciam impossíveis de cumprir. Martelavam-me as ideias de tempos a tempos. E depois de tanto tempo, houve um momento de clareza. Foi a primeira história, a primeira de todas, a que me fez querer continuar, a que pela primeira vez me fez sentir aquela coisa indefinível que é sede e saciedade ao mesmo tempo, que é gloriosa mas aterradora, que me deixa num limbo entre o desespero e a esperança. A história inacabada: “Eles estavam felizes e eu não fui capaz de escrever mais.” Eu sabia que a história era trágica, afinal era da minha cabeça, e por mais que eu gostasse de dizer que o que sentia era piedade (pobres personagens a quem vou roubar a felicidade que eu mesma ofereci), a versão sincera obriga-me a admitir que era inadequação. Afinal, nunca tive qualquer espécie de escrúpulos no que diz respeito a finais cruéis. Agora sei que o final trágico que eu tinha previsto, pode ser apenas o início de algo muito maior. E finalmente, a primeira história ganhou um objectivo, já não está irremediavelmente perdida. Ao fim de tantos anos, encontrei o sentido que lhe faltava. Finalmente, pode deixar de ser mais uma história de amor trágico e impossível. Será a primeira história feliz.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Silêncio

no silêncio
em mim
não há portas nem janelas
não há entrada nem saída
não há espaço nem vazio
no meu silêncio
está o medo
e o ruído disfarçado
no meu silêncio
estão os gritos que não dei
e os que dei
para dentro
em silêncio
no silêncio
estão os segredos
no silêncio
está a magia
em silêncio
estão as palavras
que não acabam
e procuram desesperadamente por um fim
em silêncio
há tempestades
erupções
cataclismos
pequenos apocalipses
pequenos mundos que nascem e morrem todos os dias
em silêncio
em mim
silenciosamente
correm rios
às vezes secam
desabam montanhas
erguem-se cidades
escoam esgotos
apagam-se beatas em cinzeiros de vidro
silenciosos
no meu silêncio
está tudo o que não ouviste
e tudo o que imaginaste
em silêncio
no meu silêncio
morrem crianças
e outras nascem adultas
e eu sou todas
que é sempre a mesma
em silêncio
no meu silêncio
ninguém chora
porque as forças são brutais
e não se esgotam
mesmo em silêncio
sobrevivem sempre
no silêncio
explodem edifícios
apagam-se fogos
outros deixam-se arder
que o fogo purifica
pelo silêncio
em silêncio
faço sacrifícios
aos deuses e a mim
no meu silêncio
está a morte
e grande parte da vida
em silêncio
no meu silêncio
tenho um grande sorriso
e uma infinidade de bons sentimentos
como o ódio e o rancor
guardados
em silêncio
com a vergonha
sem grande pudor
em silêncio
estão as declarações grandiosas
os discursos
a sabedoria
o código que decifra a poesia
com que despejo
aqui
o meu silêncio
no silêncio
em silêncio

sábado, 15 de novembro de 2008

Titânia

O meu silêncio incomoda-te.
O meu olhar perturba-te.
A minha postura não é correcta.
Adoro o meu corpo mas raramente o exibo
e a minha anatomia intriga-te.
Mas o motivo é simples:
a humanidade em mim
repugna-me
e quero ser melhor do que isso.
Coloca-me num pedestal
e adora-me de longe.
Se te aproximas eu fujo.
Tenho barreiras de titânio em meu redor
e o meu medo assusta-te.
Sou feita de um estranho metal
e é isso que vês nos meus olhos.
Só isso,
metal.
Recua mais
e entra para trás dos olhos.
De qualquer modo,
já me estás embutido na retina.

domingo, 9 de novembro de 2008

Poema da Bicicleta

Sonhei que era pequenina
e estava numa floresta encantada
cheia de cores alegres e doces
e muitas pessoas pequeninas
como eu.
Andava de bicicleta
alegremente, entre elas,
como o meu pai me ensinou há muitos anos
quando me largou e deixou ir sozinha
sem rodinhas de apoio pela primeira vez,
e eu estava mesmo feliz.
Acordei por um instante
e quando voltei a sonhar
estava de volta à floresta
e ia continuar a brincar
mas desta vez
as árvores chegavam-me aos tornozelos
e eu ouvia os risos alegres e doces
por baixo de mim
sem que lhes pudesse chegar.
A bicicleta era demasiado pequena para o meu tamanho
e eu mal me podia equilibrar.
Cresci para fora do meu sonho
e já não podia fazer parte dele,
embora tentasse desesperadamente voltar,
e por isso comecei a chorar.
Chamei pelo meu pai
e disse-lhe que estava triste e tinha medo.
E ele respondeu-me:
"Ainda tens muito que pedalar."
Mas eu desisti antes de começar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

História de-gelo.

Eles desejavam-se mutuamente, mas ambos ignoravam o facto de o seu desejo ser correspondido. Então, ignoraram-se reciprocamente na esperança de se tornar objecto de desejo do outro, em profunda ignorância da simetria táctica. Cada vez mais distantes, deixaram apagar o desejo, sedados na frustração do fracasso sedutivo. Um dia caminhavam na baixa de Lisboa, em direcções contrárias, e ao cruzarem-se reconheceram a presença um do outro, trocando um frio acenar de cabeça. Quando digo frio, quero dizer gélido, sibérico, congelante. Tanto que o chão que pisavam começou verdadeiramente a gelar, a uma velocidade estonteante, dezenas de metros em redor. Aterrorizados, olharam em volta. Entre eles, abria-se uma fissura no gelo, com um ruído ensurdecedor. Os estalidos secos do gelo troavam-lhes nos ouvidos. Olharam um para o outro, ainda cheios de terror, e apercebendo-se da sua culpa começaram a rir. As gargalhadas ganhavam um tom cristalino no ar gelado e ecoavam até longe. À medida que eles iam rindo, o gelo começou a derreter. Eles agarravam-se às barrigas, rindo sem parar, e o gelo derretia. As pedras da calçada, a terra e o alcatrão transformavam-se em água. E Lisboa era Veneza, com canais em lugar de ruas. Sempre a rir, eles nadaram até às portas dos Armazéns do Chiado, onde a água acabava, e treparam a margem de alcatrão seco. Subiram a rua e sentaram-se nas escadas da Basílica dos Mártires, recuperando o fôlego. Ali se espraiaram, deixando as roupas secar ao sol, como náufragos.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Uma história com moral.

Eu tinha ido ao supermercado com o meu pai, fazer umas compras rápidas para o lanche. Tínhamos acabado de entrar quando por qualquer motivo eu olhei para trás e vi uma senhora de rosto verde, ombros tortos e com um ligeiro coxear. Morta de riso, puxei o meu pai para um dos corredores laterais e, com dificuldade, pelo meio das minhas pequenas gargalhadas nervosas e compulsivas, informei-o:
- Pai, acabei de ver um zombie a andar na nossa direcção. A sério!
E fechei os olhos, para dar mais uma gargalhada. Quando os abri vi com enorme espanto e terror que o meu pai já não estava à minha frente mas entendido no chão, de crânio aberto e vazio. A senhora zombie estava a centímetros de mim, e eu ainda disse:
- Os zombies não existem.
Mas mesmo assim ela comeu o meu cérebro.
É isto que acontece aos meninos e meninas que gozam com as pessoas no supermercado, na rua, na escola e noutros lugares.

P.S. – Come a fruta e os legumes até ao fim, porque o papão não existe mas o cancro sim.

domingo, 12 de outubro de 2008

História do abre-cartas.

Era a inauguração de uma galeria de arte, e as minhas amigas tinham-me dito que a lista de convidados estava repleta não exactamente de jet-sets desenxabidos mas de artistas da moda, pelo que merecia ir vestida para inspirar. Escolhi um vestido de veludo azul, digno de uma diva, ou melhor, de uma musa, e enquanto moldava com alguma dificuldade o cabelo em caracóis largos e aplicava a minha arte nas pinturas do rosto, fui bebendo um copo ou outro de um whisky novo oferecido por um velho ex-namorado. Lembrei-me da primeira vez que tinha provado whisky e perguntei-me como teria sido capaz de repetir a experiência. Tinha quinze anos e a coca-cola tinha acabado; também não havia gelo, pelo que me juntaram água no copo para diluir a bebida. Devo ter dado no máximo dois goles, depois do que despejei a bebida na sanita e vomitei o resto. Voltei a sair da casa de banho com um grande sorriso e o copo vazio, mas por momentos tinha acreditado que ia morrer no chão de azulejos brancos. Agora tinha bebido um terço da garrafa e ainda não me sentia alcoolizada o suficiente para aguentar a noite de sorriso nos lábios. Ainda não estavam assim tão dormentes. Apanhei um táxi e encontrei as minhas amigas à porta da galeria. Entrámos juntas e elas reuniram-se num grupinho, rindo e conversando, enquanto metralhavam olhares sedutores em redor. Eu estava de péssimo humor e tinha a boca seca, pelo que me dirigi imediatamente ao bar. Era o que este tipo de eventos tinha de bom. Pedi um whisky, para continuar no ritmo, mas desta vez dos bons. Dos mais ou menos, que era o que havia. Enquanto observava os movimentos do barman, o homem ao meu lado começou a conversar comigo. Da boca dele saiam apenas banalidades entrecortadas de lisonjas. Uma óbvia e pouco imaginativa tentativa de engate. As minhas respostas mordazes e semi-provocativas surtiram o efeito habitual e ele continuou a falar entusiasticamente. Tinha um aspecto bastante atraente e era nítido que estava habituado a ter sucesso com as mulheres. Ponderei deixar-me seduzir. Seria uma companhia agradável para aquela noite. Voltei para junto das minhas amigas que imediatamente me informaram que o homem com quem tinha estado a falar era um jovem empresário do ramo imobiliário que tinha já seduzido duas delas com promessas de amor profundo e verdadeiro, promessas tão curtas quanto o tempo que tinha passado com elas na cama. Alertaram-me para não cometer o mesmo erro e eu assenti. Claro que não me deixaria levar por promessas, visto que ele queria precisamente o mesmo que eu. Nessa noite deixei-me levar para casa dele, sorrindo muito sempre que ele dizia alguma coisa mais romântica. O meu tédio era profundo. Estava a passar uma fase de brutal desencanto e sustentava-me a álcool e anti-depressivos. Sempre fora fã da auto-medicação. Na manhã seguinte vesti-me enquanto ele ainda dormia e apenas por consideração o acordei para dizer adeus. Ele ficou ridiculamente surpreendido e percebi que não lhe agradou o meu desprendimento. Provavelmente sentia que eu lhe estava a roubar o papel, emasculando-o. Dei por mim a sorrir no elevador, enquanto descia. Pelo menos já era qualquer coisa. Durante a semana seguinte recebi vários telefonemas para o telemóvel, para casa e até para o trabalho. Por mais que me aborrecesse a insistência, também me agradava ser desejada e acabei por ceder. Continuámos a dormir juntos ao longo de dois meses mas ele não era assim tão interessante e o sexo não era assim tão espectacular e eu cansei-me depressa. Comuniquei-lhe a minha decisão de o excluir da minha vida, pois nem sequer me interessava para amigo, afinal não me tinha esquecido que ele partira o coração não de uma mas de duas das minhas melhores amigas. A reacção não foi agradável. Aparentemente ele não era desprovido de sentimentos e tinha-me escolhido a mim para alvo das suas afeições. Eu já me tinha apercebido há muito tempo da dificuldade monstruosa que os homens têm em lidar com a rejeição e por isso senti alguma preocupação. Mas foi apenas momentânea; meia garrafa de gin e três anti-depressivos depois já nem me lembrava que ele tinha existido. Porém, ele não se esqueceu de mim. Começou a esperar-me à porta do trabalho durante a hora de almoço para falar comigo. Parava o carro, pouco discretamente, junto à porta de minha casa, aos fins-de-semana, e controlava os meus movimentos. Em pouco tempo não havia nenhum lugar em que ele não estivesse e eu comecei a ter dificuldade em respirar. Experimentei ignorá-lo mas o resultado não foi bonito. Passei então a cumprimentá-lo com frieza, mas deu no mesmo. Aos poucos, fui-me habituando a ter aquela sombra doentia, até porque o resto da minha existência não era exactamente saudável. Até que um dia. Eu tinha ido beber uns copos, mais uns, com as amigas do costume, mas naquele dia estava a beber com demasiada sofreguidão e fiquei indisposta. Depois de vomitar na casa de banho do bar, bebi mais um copo, para lavar o sabor, e decidi voltar para casa mais cedo. Elas ficaram. Ele estava à minha espera à porta do bar, desta vez fora do carro. O hálito dele tresandava; qual de nós o pior. Voltei a lembrar-me do meu primeiro whisky. Ele agarrou-me com força pelos braços e começou a falar, muito perto de mim. O velho discurso. Eu estava mesmo cansada. Ele começava a inspirar-me um nojo profundo, e a sujidade da rua não ajudava. E eu estava mesmo cansada. Não foi difícil soltar-me e fazer-lhe perder o equilíbrio já instável com um pequeno empurrão. Enquanto ele se debatia com o álcool para se conseguir levantar de novo, eu tive tempo suficiente para procurar dentro da mala. Naquela tarde tinha estado a escolher uma prenda de aniversário para a minha mãe. Fiquei indecisa porque também havia um colar de ágatas amarelas que me agradou bastante. Mas acabei por escolher o abre-cartas com um lindo cabo de prata trabalhada e lâmina de aço inoxidável. Tive tempo para o retirar cuidadosamente do estojo. Ele estava quase de pé, apoiado a um carro. Não havia ninguém em redor. Eu avancei para ele e, com toda a força que tinha, levantei-o pelos cabelos e empurrei-o para cima do capot do carro. Encostei-lhe a lâmina romba à cara, por baixo do olho esquerdo, e jurei que o matava se ele não desaparecesse. Fiz força suficiente para lhe abrir um golpe na cana do nariz. Lambi-lhe o sangue da ferida – acho que estava um pouco anémica nessa altura – e limpei a lâmina no colarinho azul da camisa dele. Fui-me embora, excitada, enquanto ele praguejava na minha direcção. Chamou-me puta. Não sei porquê, mas decidi voltar para trás. A rua continuava estupidamente deserta à excepção da nossa presença. Cravei-lhe o abre-cartas em cheio no coração. E fui para casa feliz, como não me lembrava de me sentir desde pequenina, nos dias de festa. Mesmo feliz. Guardei o abre-cartas de recordação. Nunca ninguém soube que fui eu. Nunca fui apanhada. Foi apenas mais um caso de violência nocturna. Banal. As minhas amigas quiseram ir ao funeral e choraram, abraçadas, admitindo que ele podia não ser a melhor pessoa do mundo, mas mesmo assim sempre fora encantador. Eu reconheci, no meio dos rostos pesarosos, o pintor cujos quadros tinham inaugurado a galeria e fui falar com ele. Ele lembrava-se do meu vestido de veludo azul e convidou-me para jantar. Eu aceitei e dormi com ele nessa noite. E acabei por oferecer o colar de ágatas à minha mãe. Ela sempre gostou de amarelo.

sábado, 4 de outubro de 2008

Dois cigarros pensativos.

De pé, junto à janela, fumava um cigarro para fingir que fazia algo mais que pensar. Na verdade acabava por fazê-lo de facto. Mais estupidamente, acabava por pensar no facto de o fazer afinal. Algo mais que pensar. De tal forma que o cigarro e o pensamento se confundiam. E por um instante, pensou noutra coisa. Mas depressa regressou ao fluxo de ideias que a trouxera à janela, àquele cigarro. Um paradoxo de impotência total e controlo absoluto dominava-lhe os sentidos. Tinha consciência da existência física dos nervos, que deixavam de ser uma ideia abstracta para se tornarem dolorosamente palpáveis. Não estava a ser uma noite tranquila. Deixou que o fumo lhe invadisse outra vez a boca, a garganta, os pulmões. E não existia ar. Nem fumo, nem nada. Era vácuo dentro dela, selada. Sentiu a boca secar, a garganta arranhada, os pulmões pesados dentro do peito, cansados. Engoliu um pouco de água, do copo que segurava com a mão esquerda, e depois mais um pouco, até acabar. Sentiu o líquido fresco a bater pesadamente no estômago vazio. Não tinha fome. Agora já não. Imaginou o vazio da metáfora encher-se de fumo, mais uma vez. E o fumo era raiva. Uma raiva morna e suave. Porque só agora compreendia onde estava o seu verdadeiro erro. Uma falha de carácter que já tinha admitido há tanto tempo e só agora, só agora via que nunca tinha sido tão grave como com ele. Estúpida. Sentia-se estúpida. Ao mesmo tempo, sentia a invariável saciedade que lhe trazia a compreensão. Apagou o cigarro e acendeu outro, imediatamente. Ela não precisava de ser superior. Todas as vezes em que suportara a crueldade de uma guerra psicológica cuja arma era o terrorismo emocional, todas as vezes em que condescendera, em que não retaliara - já lá iam os tempos em que gritava e lhe tentava bater, assim como o histerismo silencioso da adolescência interna tardia – em que deixara passar, por acreditar que podia ser superior a tudo e sobreviver, foram de uma cegueira profunda. Que não pôde decifrar nesses tempos a arrogância que sempre apregoara tão humildemente, por ser tão melhor que os outros e conhecer tão bem a sua própria humanidade. Vontade de se esbofetear. Agora via que nunca tinha sido pior do que com ele. Na verdade, comparativamente, a condescendência para com o resto do mundo era absolutamente insignificante. Sim. Desta vez percebia o que tinha de fazer. Não precisava de ser superior. Ele é que tinha obrigação de ser uma pessoa melhor. Tão bom quanto ela, no mínimo. Não lhe admitiria nada que não admitisse a si mesma. Daí em diante ele não seria apenas humano como todos os outros, que cometem erros. Não. Isso não seria suficiente para lhe justificar as más acções. Nunca voltaria a perdoá-lo. Porque o perdão era merecido por quem lhe mostrava arrependimento. Aliás, não só não voltaria a perdoar espontaneamente, como sentia todas as velhas feridas a reabrir. Retirava-lhe todos os perdões antigos. Todas as feias recordações que tinha dele nadaram até à superfície. E limpando uma, mais rebelde, da face, apagou o segundo cigarro e abriu a porta do quarto. Com um sorriso extraordinariamente psicótico nos olhos e na boca, disse-lhe: “Eu sou a Nicole Kidman. Tu és Dogville.” E saiu de casa, sem sequer se preocupar com o facto de ele nunca ter visto o filme.

domingo, 21 de setembro de 2008

Poema do caminho para casa

velozmente
a paisagem
e o chão que corre
muito abaixo dos meus pés

um corredor de árvores
velozes
por cima da minha cabeça
quase lhes posso tocar
mas não posso
e elas passam
velozmente
por mim
que estou parada

o movimento e eu
formamos uma dicotomia singular
com pouco espaço para o cinzento

a velocidade aperta-me
e deixa-me neste lugar acanhado
em que não me posso esticar
e a trepidação
também me oprime
como se eu fosse ruir
a qualquer momento
como um prédio novo
de alicerces instáveis

comecei a ser construída pelo telhado

o que é que treme?
sou eu ou o mundo em que me deixo envolver?
é o chão?
sou eu?

a velocidade concilia-se comigo
o meu coração também corre
velozmente
assustado
debaixo de tanto verde

veloz
tropeça
e eu rio
porque posso
e faz passar

hoje não dormi
mas acordei com vontade de chorar
vou para casa
mas não posso ficar
começo a rir
devagar

condiz comigo
esse riso cruel
condiz comigo
esse olhar parado
fica-me bem
a paisagem acelerada
nos olhos
velozes

sábado, 20 de setembro de 2008

Reencontro

Play

Olharam-se nos olhos e ele disse:
- Andei a perder o meu tempo contigo. És das pessoas mais desinteressantes que já conheci.
Ao que ela respondeu:
- Não viste nada.
E, fechando o punho direito, puxou atrás o braço e assentou-lhe um soco no maxilar esquerdo, deixando-o a escorrer um fio de sangue pelo canto da boca e partindo dois dedos da mão: o médio e o anelar.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e, sem dizer nada, beijaram-se uma e outra vez, tentando em poucos minutos recuperar o tempo perdido.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e, sem dizer nada, ele beijou-a. Mas ela afastou-o bruscamente, dizendo:
- És das pessoas mais desinteressantes que já conheci. Não me faças perder mais tempo.
E voltou-lhe as costas.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e ele disse:
- Eu gosto de ti e sei que também gostas de mim. Já chega de perder tempo. Fica comigo.
E ela respondeu, com dureza:
- Eu não mereço ser amada, eu não sei ser amada. Não percas o teu tempo comigo porque eu vou sempre escolher o escuro. De lá vejo melhor. É por isso que vejo tão bem o amor. Porque estou à sombra. Não vês a cor da minha pele? É pálida.
Sentindo-se dominar pela revolta, ele pergunta:
- Mas podia ser diferente. Como é que podes não escolher o amor?
- Já disse. – respondeu ela, com muita calma – Para o compreender melhor. Estás a ver esta? – e apontou para o chão, para a sua própria sombra – Nem tu a podes iluminar. Ninguém pode.
E voltou-lhe as costas, para sempre.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e ela disse:
- Não podes fingir que este encontro não significa nada. Vamos fazer de conta que nunca chegámos a perder tempo e tentar outra vez. Fica comigo.
E ele respondeu, com dureza:
- Foi muito fácil apaixonar-me por ti. E inacreditavelmente difícil esquecer-te. A que é que achas que dou mais valor?
Abismada, ela pergunta:
- Como é que podes não escolher o amor? Podia ser diferente, desta vez.
- Nunca é diferente com ninguém. É sempre tudo igual. E eu não estou a não escolher o amor. Simplesmente escolho não o ter contigo.
E voltou-lhe as costas, para sempre.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos e após um breve silêncio, ela disse:
- Há quanto tempo… Então, ‘bora tomar café?
Ele sorriu e respondeu:
- ‘Bora!
E afastaram-se os dois, rindo, como velhos amigos.
Ou então

Rewind

Olharam-se nos olhos por uma breve fracção de momento e, apressadamente, desviaram o olhar fingindo não se ter visto, seguindo cada um o seu caminho, em direcções opostas, ambos imaginando que se tinham beijado.
Para sempre.

Stop

The End

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Cena de paixão escaldante improvisada

Apenas duas cadeiras. E eles sentados frente a frente, sem nada entre si a não ser o ar que partilhavam em respirações nervosas.
- Então, o que é que tens feito? – perguntou ele - Não sei nada de ti há meses.
- Hhmm. O de sempre. Nada de especial. Apaixonei-me e voltei a desapaixonar-me nos entretantos mas fora isso, fui eu e a praia. – respondeu ela.
- Não tiveste saudades minhas?
- Sinceramente, não pensei muito em ti. Volta e meia lembrava-me da tua cara mas esquecia-me logo a seguir. Sem ofensa. Aliás, agora que penso nisso, é estranho. Quando me lembro de ti, estás sempre muito sério. Costumo lembrar-me das pessoas quando estão a rir, às gargalhadas mesmo.
- Estás a tentar dizer que não tenho piada? – provocou ele.
- Não, até tens a tua graça. Suponho que as minhas recordações de ti não sejam muito felizes. Não são. – e encolheu os ombros, com uma certa indiferença.
- Nesse caso devíamos fazer alguma coisa para mudar isso. – soerguendo-se, beijou-a impetuosamente. A princípio ela correspondeu com intensidade, desencostando-se da cadeira na direcção dele e agarrando-lhe o pescoço com as duas mãos, depois do que o empurrou bruscamente e se levantou de um salto, ofegante. Com toda a força que tinha, deu-lhe um estalo na face esquerda.
- Podes parar por aí. – disse, com azedume.
- O quê? Vais dizer que não te sentes atraída? Não foi isso que me pareceu. – desafiou ele, com um sorriso sobranceiro, agarrado à cara.
- Se eu beijasse e fodesse todas as pessoas por quem me sinto atraída, para além de bissexual, era uma puta. Ora não sou nem uma coisa nem me considero ou aspiro à outra. Podes parar. – repetiu, já com a respiração mais calma, mas nem por isso com o coração menos acelerado.
- Quem é que falou em foder?
- Não se falou mas pensou-se. Não me chames estúpida. Sei bem que estás a pensar por aqui – agarrou-lhe os testículos – e não por aqui. – largando-os, bateu-lhe com os dedos na testa, furiosamente. – Eu não gosto das coisas pela metade. Quando quero, quero tudo. Por isso não quero. Podes parar. – voltou a repetir.
- Desculpa. – disse ele, largando a cara humildemente, chegando mesmo a corar de nervosismo, sem saber o que fazer a seguir.
Ela olhou para aquele rosto acriançado e leu o embaraço dele. Atirando a cabeça para trás, suspirou, impaciente. Teria de ser ela a tomar as rédeas. Deu-lhe outro estalo, na mesma face. Ele continuou sem reacção, olhando-a fixamente, indeciso. Ela voltou a esbofeteá-lo, desta vez na face direita. Subitamente, decidindo-se, ele ergueu a mão e, sem se conter minimamente, retribuiu o estalo. Ela viu estrelas e, ainda meio zonza mas contente por finalmente o ter arrancado do bloqueio, puxou-o bruscamente pelo cós das calças, beijou-o o mais agressivamente que conseguiu e despiu-lhe a camisola, atirando-a para longe, pelo ar.
Parando, romperam os dois em gargalhadas nervosas enquanto a assistência rompia em aplausos, assobios e comentários jocosos:
- Come on baby, light my fire!
- Eh, porno stars aí!
- Hardcore, heavy-metal!
- Desculpem lá mas isso foi muito à reality-show! Que bimbos, pá!
- Boa. – rematou a encenadora, fazendo-lhes sinal para se sentarem. Eles assim fizeram, satisfeitos, dando lugar ao próximo exercício.
- Já te estavas a esticar, bebé. – disse ele, enquanto voltava a vestir a camisola.
- Estava em personagem, pá. – e desataram os dois a rir outra vez.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Eyeliner grief

Hoje voltei a pintar os olhos de preto
Não sei se por ter voltado ao sítio em que te conheci
Talvez em sinal de luto
Por ter enterrado o meu amor por ti.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Poema de pasmar

Estou aqui sentada
permanentemente espantada de tudo o que vejo ou sinto
e tudo o que não vi nem senti também me espanta.
Este pasmo absoluto de tudo,
como o de um tolo que sai de casa pela primeira vez e de tanto pasmar se baba,
surpreende-me ele mesmo,
a mim, que pensava já saber tudo
ou pelo menos aquilo que importa saber.
Afinal, não sei nada.
Porque sempre que vejo uma coisa velha ela parece-me nova,
sempre que vejo as mesmas pessoas elas parecem-me diferentes,
mais velhas, mudadas.
E fico pasmada.

Espanta-me o meu quarto desarrumado,
quando sempre precisei do caos para me sentir viva.
Espanta-me o meu adiar de tudo,
quando sei que adio na esperança de que o prolongar torne tudo mais real
e menos efémero.
Espanta-me a minha vontade de escrever,
quando nunca quis outra coisa na vida
a não ser aquilo que me dá vontade de escrever.
Espanta-me a maneira como sinto as coisas,
quando já analisei em mim tudo o que há para conhecer.
Espanta-me a persistência de sentimentos gastos,
quando sei que fui eu que fiz por mantê-los acesos.
Espanta-me a forma do meu corpo,
quando me vejo nua ao espelho todos os dias.
Espanta-me o prolongar alegre da minha vida,
quando no fundo sempre desejei morrer mais cedo.
Espanta-me o amor que sinto por pessoas e objectos e lugares demais,
quando já conheço de cor o seu cheiro a podre.
Espanta-me ser igual a todos os outros,
quando cheguei a acreditar quando me disseram que sou especial.

E fico para aqui pasmada,
sentada no meu lugar.
E não faço mais nada senão pasmar.

Sou um desperdício de espaço,
um saco roto por onde cai o que há.
Ou o que havia.
E havia muita coisa:
esperança, vontade, qualidades, talentos, beleza, um grande coração humano.
E tudo isso fica espalhado pelo chão desarrumado do meu quarto,
misturando-se com as meias sujas, os jornais do ano passado,
os sapatos, os talões escritos por mim no avesso,
os livros, as canetas que não escrevem
e o cotão.

Não consigo deitar nada fora
porque me parece tudo novo, diferente e original
de cada vez que olho.
E é tudo velho, tudo velho
e está tudo visto, tudo gasto.
Gostava de ser mais ecológica e reciclar a minha vida
porque sei que este espanto todo
não passa de sentimentalismo barato.

sábado, 13 de setembro de 2008

Acercai-vos e atentai:

Disponível para bajulações,
sensível a insultos
e reclamações;
afoita na resposta
(que será amiga e bem disposta).

Sim, é só para dizer que, ao fim deste tempo todo e a pedido de várias famílias, lá me dei ao trabalho de criar um email para o blog (mas uma rimazita estúpida cai-me sempre bem).

seriousandsober@gmail.com

Dedicado aos comentadores tímidos que têm algo a dizer mas não apreciam a praça pública. Façam o favor de escrever, que tenho saudades vossas.

Saudações coisas.