terça-feira, 6 de novembro de 2012

História de caminhar sobre nuvens.


O caminhar sobre as nuvens assusta-me porque qualquer passo em falso é a queda para o infinito. O vapor de água que respiro enche-me os pulmões com um cheiro diferente do que estou habituada. Um cheiro bonito. Cheira a sonhos longínquos, sonhados apenas dentro de sonhos, porque nunca ousei sonhá-los acordada. E agora sinto-lhes o cheiro. Mas o vapor de água também me tolda a vista, já de si tão fraca, já de si tão idosa, que por ver tão mal, vê sempre mais do seria expectável. E eu vejo nos sonhos com as mãos e com o cabelo, principalmente, mas vejo também com o resto do corpo todo, porque os meus olhos não prestam e são um mero artifício estético. Por isso guio-me pelo resto, enquanto caminho a medo sobre as nuvens. No percurso desmapeado, a ausência de horizonte conspira com o excesso da pressão atmosférica para me comprimir o peito. Para comprimir os órgãos que vivem dentro do meu peito, em convivência difícil. Os meus órgãos invejam-se uns aos outros porque todos gostavam de experimentar sentir o que os outros sentem e só eu posso sentir tudo porque é só a mim que tudo isto pertence, soberana, tirana das minhas vísceras rebeliosas. O que todas elas sentem, o que carregam em comum, é o medo de mim e dos meus sonhos.

Precipitei-me. Precipitei-me sobre o mundo e sobre os homens. E varro tudo à minha passagem. Sou o fim e o princípio de tudo, quando quero, se quiser. Da forma como acabei, recomeço. Entre a chuva.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Antílope II


Sinto nos músculos das pernas
um frémito que me lembra a vida
como réplicas eternas
do entrar sempre de fugida.

Sinto nos olhos o frio do vento
e nas mãos a erva húmida
descubro o peito crú ao relento
aguardando o fim da corrida.

Sinto no ventre as presas do meu predador
rasgada como um antílope
não morto mas em estertor
no chão que ainda treme do galope.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Do amor, das palavras e do poder.

Andava há semanas a meditar no poder de destruição das palavras. Andava a pensar que se te dissesse que te amava tu ganhavas o poder de me destruíres. E que, de alguma forma, se eu me mantivesse calada, o silêncio me protegeria. Sempre me movi pelo medo. Raramente contrariei este instinto cobarde. E agora descubro que me iludia propositadamente. Eu sempre soube que o verdadeiro poder não está nas palavras mas naquilo que as move. O que te deu o poder de me destruíres foi o facto de eu te amar, independentemente de o ter dito ou não. E também sei que quando eu te olhava nos olhos e pensava no quanto te amava tu sabias que era isso que eu estava a dizer com os olhos. E, ciente do poder que tinhas, soubeste que a única coisa que podias fazer com ele era precisamente destruir-me. Porque não me podias devolver esse poder e também não o podias guardar impunemente. Restou a única opção. E assim, tão facilmente, morri às tuas mãos.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

desconcentrismo

o frio que tornava as minhas noites mais sós
e a minha cama demasiado grande para estar vazia
começa a recuar
aproxima-se o solstício
o calor vai-se insinuando nos meus dias
e a roupa torna-se escassa
e os tecidos tornam-se leves sobre a minha pele
estou cada vez mais nua
e a ausência dos teus olhos sobre as minhas coxas
mal cobertas por flores coloridas que esvoaçam
e tecidos que escorregam contra a gravidade
torna-se evidente demais
e insuportável
dispensava qualquer ajuste climático
as estações do ano deixaram de ser importantes
equinócios e solstícios significam apenas o passar do tempo
sem que nada altere o meu desejo
de que o tempo e o espaço se confundam
e uma vez mais deixem de ter significado
por estar no centro dos teus braços
no centro do teu corpo
no centro de ti

sábado, 5 de maio de 2012

Poema da boa menina

Tão boa menina.
Das coisas mundanas não só nunca estraga nada
como conserta tudo com mãozinha prendada.
E nunca, nunca desatina.

Nos dias em que, desconcentrada,
se desvia e lhe escapa a atenção
espalha-se em seu redor um círculo de destruição
e ela, aflita, deixa cair o coração na estrada.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Poema do paradoxo verdadeiro


O exercício mental do sonho pragmático
é o meu alimento.
Talvez porque saiba lidar bem com a desilusão à força do hábito,
ou talvez o hábito surja por insistir em iludir-me tanto.
As coisas simples são puros fascínios
talvez porque nunca tenham integrado nenhuns dos meus desígnios.
Mas é o complicado que me apaixona,
o complicado desintegra-me
e a ele me entrego porque faz parte de mim.
Talvez por isso me sinta em casa quando estou triste.
Ou então fico triste quando estou em casa.
Seja como for, é assim.
No fundo, talvez seja a mesma coisa
e apenas eu que o complique
de tanto me querer apaixonada.
É uma espécie de cinismo romântico que nunca repousa
esta coisa de compreender perfeitamente o que sinto
e de o explicar até à exaustão
como enigmas tantas vezes decifrados e de novo recodificados.
Ouso ordenar os meus contrários em turbilhão.
Proclamo os meus segredos
a fingir que são a maior verdade de todas,
cada um deles a maior,
e consigo acreditar que são
porque sou mestre de mim própria.
Acredito nas ideias que inventei delirar
e coloco-lhes rótulos impensáveis
e organizo-as, cada uma em sua secção.
E posso pegar em tudo o que digo e invertê-lo
e é tudo verdade na mesma.
E mesmo entre bruma, consigo vê-lo.
É verdade. Eu não minto.
Na minha cabeça cabe tudo
e não há nada que eu não devore
sem precisar sequer de desapertar o cinto.
A minha fome nunca dorme,
é a única forma de me manter saciada.
É que o que quero é o querer em si,
mais nada.
E este amor ficcionado
por anti-heróis verdadeiros, a sério
é o que me traz a este inferno reservado,
é o que alimenta o meu mistério.
O chão é verdadeiro e fixo
mas o meu andar é sonhado.

terça-feira, 3 de abril de 2012

jovem enamorada de livro no regaço

a aparência pacífica
é simples inquietação encapotada
de sentir pensamentos
que crê perenes
apenas para perecerem
instantes depois
num ápice prolongado
de puro prazer pedante
que ao provar reprova
a si própria desprezando

terça-feira, 20 de março de 2012

poema de teres coração

pergunto-me sempre que te surpreendo
a temperatura do olhar
quantos corações te restam
quanto és capaz de suportar

não te cansa?
não te dói?

devias ter ficado pela primeira dança

não sei o que fiz para merecer
tantas oportunidades de te amar

não entendo porque queres voltar a provar
desta minha morte
porque me escolhes para acumular
à tua má sorte

estive sempre certa
de que podia viver sem ti
mas não foi grande descoberta
saber que errei quando fugi

sempre me foste irresistível
mas é natural que nunca o soubesses
porque sempre te resisti.

nunca quis mudar nenhuma pessoa
nem quis que ninguém fosse diferente
e por mais que me doa
sempre os amei completamente

e nunca ninguém me falhou
porque eu soube sempre esperar o pior
e quem me amou ou não amou
para meu grande consolo
serviu-me sempre bem dessa dor
e deixou-me sempre no controlo

isto dá-me segurança

o meu problema contigo
e com os teus corações infinitos
é que sempre me deste esperança

sexta-feira, 9 de março de 2012

Ups! ou Como Saber das Coisas

"Se não tens cuidado ainda te faço feliz."

Já estive nos dois lados desta frase.
Sei tudo o que há para saber sobre o amor.

ou

"Se não tens tido cuidado ainda te fazia feliz."

Já estive nos dois lados desta frase.
Sei tudo o que há para saber sobre a amargura.

quinta-feira, 1 de março de 2012

o mantra dos amantes

por pouco que seja eloquente
balbuciado entre ais
“gosto muito, gosto para sempre
mas não quero, não quero nunca mais”

a distância entre o desejar e o querer
está na pequena decisão
está em escolher
a quem se entrega o coração

de entre tanto que se gosta
não se pode querer tudo
e deposita-se a aposta
e penhora-se o veludo

se nos calha em sorte
o abandono amoroso
essa espécie de morte
esse estado glorioso

repete-se o mantra
até à exaustão palavrosa
até ao momento em que se encontra
qualquer ideia mais ambiciosa

que o esquecimento
em si é pouco
não me basta um momento
não me chega um amor rouco

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

poema de amor

esta nobre e modesta solidão
que com tanto empenho me imponho
é a máscara triste da negação
compreendo agora, suponho

e ao fim deste tempo todo
fica-me apenas uma questão
como não adorar-te?

a ti inteiro, e ao teu modo
com as imperfeições que venero
a tua busca incessante
por coisas que nem eu pondero

as tuas interrogações e a incerteza
as palavras tristes e a voz cansada
a desilusão que parece estar-te sempre reservada
mesmo que não seja da tua natureza

ainda acreditas que vai ficar tudo bem

e eu encontro-me sem opção
é imperioso reformular
como não amar-te?

cheguei ao termo da minha negação
renego todos os corpos
em que me afoguei para me esquecer
reconheço os destinos tortos
que tomei para não ver

e só quando te vi
é que tive noção
compreendi
-- com todas as consequências que podemos prever
hoje já, ou ontem, de antemão --
quantas saudades sinto de ti

nunca te falei da tua beleza
nem da cor dos teus olhos
nunca referi como me sentia indefesa
sempre que me fazias tremer os joelhos

lamento o que escondi
e lamento a minha falta de coragem
lamento o quanto fugi
e lamento ter-te feito perder a viagem

a última coisa que digo
e a única que peço, por favor
nunca digas que morreste
sem que alguém te escrevesse um poema de amor.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Poema do cilindro

Não és tu, sou eu.
Faço círculos completos,
às voltas sobre mim mesma,
numa espécie de dança sem correntes nem tempos.

Sou eu que ponho o meu peso todo num só movimento.
Circular.
Sou eu que não paro
não querendo sequer lá chegar.

Sou eu que transformo voltas simples
em movimentos complexos
e de círculos faço cilindros
e chego a lógicas e razões partindo de destroços desconexos.

Sou eu que vou em frente,
passo por cima, atropelo e esmigalho,
em arranques implacáveis,
fiel a nada se nem a mim me valho.

Vi-te muito bem.
E digo-to na cara:
fui eu que te cilindrei.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Capitão Patchouli

Capitão, Capitão
roubaste o meu coração
Capitão Ladrão
fugiste com ele na mão
Capitão Perfume
sem pista nenhuma ateaste o meu lume
Capitão Beldade
encheste-me a vista, talvez da idade
Capitão Improvável
acordaste o meu modo implacável
Capitão Execrável
nem és decapitável
Capitão Cruel
não hás-de provar sequer o meu fel
Capitão Impossível
não há rumo para este desnível
Capitão Torto
nem morta, nem morto
Capitão Patchouli
nem deste por isso quando me escapuli
Capitão, Capitão
resta apenas dizer que não.
Porque não, porque não, meu Capitão.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Poema de a tua voz me assombrar.

em tempos fomos felizes
na nossa inocência aflita
tu beijavas-me as faces e eu sorria, embevecida
e falava-se muito
falava-se interminavelmente
falava-se para sempre
porque o tempo parava na tua voz
a tua voz vivia feliz para sempre nos meus ouvidos
e eu sei que fui eu que te fiz calar
fui eu que me cansei
mas foi um cansaço legítimo
de sentir a tua face na minha
brevemente, sempre brevemente,
e de saber que era isso para sempre
que ia sentir a tua pele e a tua voz para sempre
e que elas se misturavam nos meus sonhos
e agora custa-me sonhar contigo
porque já é tão raro
e tão raro ter saudades tuas
e tão raro ouvir a tua voz

cheguei ao limite de saber ser feliz contigo
e limitei-me a sair em silêncio
não sei se chegaste a ouvir o meu silêncio
porque não arranhaste a minha porta quando me calei para sempre
porque não procuraste corrigir a minha ausência
não procuraste impedir a minha fuga
e eu sei que queres que eu seja feliz para sempre
mas e se eu não puder,
se eu não souber ser feliz sem o teu nome nos meus olhos,
se eu não souber ser feliz sem a tua voz na minha almofada,
se eu não souber ser feliz com a minha ausência na tua pele
e se nunca voltarmos a dançar sem pensar nisso?

por mais raro que seja,
chega sempre um dia em que me volto a lembrar de ti
e em que a tua voz me pergunta qualquer coisa ao ouvido
e em que eu me lembro que a tua voz é minha para sempre
como a tua pele é minha para sempre
e que, de uma maneira ou de outra,
tu me pertences desde a primeira vez que a tua voz me fez sorrir.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Poema de seres um pão chinês.

Massa frita,
ligeiramente adocicada,
fofa e leve,
irresistível.
Ingredientes desconhecidos.
Provei um pela primeira vez,
mas só tive direito a metade
porque não era meu.
Foi partilhado.
E agora
não consigo deixar de pensar nele.
Quero um, todo para mim.
Tu és isto,
uma novidade estranha,
vinda de uma realidade distante.
Ainda nem sequer te provei,
ainda nem sequer te conheço bem,
e já te quero por inteiro.
Partilha-te comigo.
Divide-te por mim.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Poema de saber que não me amas

Saber que não me amas
traz descanso ao meu peito
onde podes agora, sem complexos nem dramas,
encostar a tua cabeça por direito.

E eu posso beijar-te os olhos e o pescoço
apertar-te com força contra mim
sem causar qualquer destroço
sem termos em vista outro fim.

Os afectos entre nós serão mais sinceros
se desprovidos de intenções terceiras
sem nos deixarem inseguros
sem abismos nem fogueiras.

Basta dizeres as palavras certas
as que fecham o coração
sem nos tornarem pedras desertas
sem processos de fossilização.

As tuas provas de não amor
são o melhor que podes fazer
permitem-me ficar neste meu torpor
e permitem-me adormecer.

sábado, 20 de agosto de 2011

Poema dos coelhos selvagens

O vento bate nas jarras e derruba as flores.
Tu sonhas de noite que não as consegues apanhar
porque elas voam sempre à tua frente.
De manhã as flores não estão lá
porque os coelhos selvagens as devoraram.
Deixaram os caules e defecaram onde comeram.
As floreiras estão cobertas de fezes e a relva está morta.
Vêem-se armadilhas para coelhos até ao infinito.

As inscrições estão cheias de erros ortográficos e gramaticais
e o meu riso profano corrompe o silêncio.
Tenho vontade de cantar para contrariar isto tudo;
se ao menos soubesse tocar guitarra
tudo seria diferente.

E não há ninguém que apanhe as jarras,
não há ninguém que limpe as flores secas,
ou que troque as de plástico que debotaram com o sol.

Ao lavar o mármore a água escorreu-me para os pés,
fiquei com os dedos cobertos de areia negra.
Por mais que os lave,
por mais que os lave,
tenho os mortos agarrados aos pés.

Esta noite pensei nos coveiros.
Vão jantar os coelhos que comeram as flores dos mortos.

Poema de te cair nos braços

Perdoa-me, minha querida,
não te queria assustar.
Não foi a tua voz ríspida
o que me fez chorar.
Não foi culpa tua se colapsei
e não faz diferença o que pensaste
nem foste tu que me mataste.
Eu já estava morta quando cheguei.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Poema de o mundo girar à minha volta.

Os cães estão agitados,
ouço-os ladrar lá fora
e cerro os meus olhos culpados,
já exaustos por esta hora.
A chuva de Agosto
faz-me sentir responsável
como se consequência do meu próprio desgosto,
da minha tormenta infindável.
A humidade pesa
e impede-me de respirar com normalidade.
Enquanto tudo em mim se arrevesa
a clamar pela vazão da agressividade
sei que o mundo se revoltará
sem perdão para a minha instabilidade
e a voz uníssona dos cães soará
como sentença a cumprir pela eternidade.

Se está mau tempo a culpa é minha
e é culpa minha se os cães uivam.
Atravesso o ar frio e bebo desta chuva miudinha
e quero juntar-me aos cães, eles salivam
na expectativa do que vou fazer a seguir.
Mas até os cães me julgariam louca se com eles uivasse.

Fecha os olhos e tenta ouvir.
É como se fosse eu que me lamentasse
como se eu fosse os uivos dos cães na tua rua.
E fecha os olhos se sentires que chove.
É como se fosse eu que chorasse
e é até mim que a chuva aflua
e é à minha volta que o mundo se move.

sábado, 23 de julho de 2011

Poema de sofrer o alento.

O meu camarote dá para a arena,
binóculos dourados auxiliam o pormenor,
observo cuidadosamente cada golpe, serena.
A lógica combate a paranóia com ardor,
a força e o medo cruzam armas,
sem que saia alguma vez um vencedor.
E no meio destas tramas
perdeu-se a verdade, oculta em olhos implacáveis,
mas tão simples, tão elementar, tão evidente,
na base pura de desejos inolvidáveis.

Foi pronunciado em voz sonora e ardente,
num instante de distracção,
despreocupado, inconsequente.
Não era mais que uma pequena culpa em admissão
não pensada e inocente.

Devia ter cuidado com o que desejo.
Devia ter cuidado com o que penso.
Devia ter cuidado com o que sinto.
Devia ter cuidado com o que vejo.

Devo ter visto coisas que não aconteceram.
Devo ter ouvido coisas que não se pronunciaram.
Devo ter sentido…
Ah, o real.
É apenas isto, genial.
O que interessa é o ritmo cardíaco,
não contes palavras, conta as pulsações.
Não será completamente ridículo
se acreditares que o sangue é o barómetro das emoções.
E a pressão nas minhas veias é perigosa,
sempre foi,
mas hoje, especialmente, sinto estranhas combustões
contorcendo-se numa agonia extremosa.

A arena revolta
abriga os corpos em decadência,
cadáveres de outro tempo
não mortos mas em dormência.
E as dúvidas que combatiam o alento,
divertem-se com a minha impaciência.

O pobre jaz agora ensanguentado
debaixo do meu olhar parado.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Poema de me roubares a ordem

O que foi leve torna-se insuportável.
Podia ter sido simples, uma doçura fugaz,
mas, descubro agora, perdura numa acidez indelével.
E a sensação de flutuar é uma memória atroz.
Tentei segurar o peso de saber a verdade
e acabei agrilhoada a uma ideia de liberdade.
Procurei com tal ardor mantê-la organizada e intacta
que não soube distinguir o limiar da obsessão
e atravessei as portas todas numa caminhada exacta.
Onde me trouxe está a danação.

Quando pensei que recuperava a nitidez no olhar
distraí-me nisso, esquecida de que haviam outros sentidos.
Foi um perfume no ar,
um sabor na minha língua,
a recordação táctil nas pontas dos dedos,
a minha humanidade completa a chiar de míngua.
E de tanto desejar o vazio,
de implorar a ausência de alma,
de sussurrar no escuro com medo do silêncio,
aprendi a derrotar o meu carcereiro.

Amor, amor,
eu tinha chegado primeiro.

sábado, 2 de julho de 2011

Da ilimitação imaginária.

Principiamos por desejar o real. Desejamos o que podemos ver. Depois de o possuirmos arriscamos imaginar o impossível. E, de repente, damos por nós a desejá-lo, damos por nós a desejar o impossível, porque podemos vê-lo na nossa mente. E dá-se um fenómeno qualquer, em que a partir do instante em que o desejamos, deixa de ser impossível.
Foi um vislumbre de qualquer coisa que nos deixou petrificados, foi um reflexo na água, um gesto pequenino que mudou a nossa concepção do universo, um tom de voz mais invulgar, um sítio qualquer onde chegámos sem saber que era para lá que estávamos a ir mas quando chegamos percebemos que não havia nenhum outro lugar onde quiséssemos mais estar. Esse deslumbramento breve deixa uma impressão gravada no corpo, qualquer coisa que se agita de vez em quando, ou para sempre, talvez se agite para sempre de vez em quando. E não sabemos como chamar a isso, porque é misterioso e não tem contornos. Não tem limites. Porque principiou por ser imaginado.
A minha imaginação é a minha maldição.