quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Uma história de nada.

De todas as histórias trágicas, esta foi talvez a mais triste de todas. Antes, houve sofrimento. Sofreu ela. Sofreu ele. Depois sofreu ele. E ela sofreu também. Sofreu-se muito, e a tristeza foi profunda. Mas esta, esta história fez-se de oportunidades perdidas. Esta história não existiu. Não era ela. Não era ele. Nunca foram eles. Eles nunca existiram. As oportunidades multiplicaram-se a pouco e pouco e a pouco e pouco foram sendo desperdiçadas. Eles não estavam lá. Não havia um lugar. Não havia tempo. Não houve nada. Não existiu. Mas sofreu-se. Tragicamente, sofreu-se por nada.

sábado, 26 de julho de 2008

Nunca estamos sós (We’re never alone)

O riso mais feliz foi o que repeti de todas as vezes em que rimos juntos. As lágrimas mais tristes foram as que não precisei de vos esconder. As palavras mais amargas foram as que pude balbuciar porque me ouviam em silêncio. Os gestos mais sinceros foram os que não precisaram de significado para vos dizer alguma coisa. O tempo mais útil foi o que ocupámos sem fazer nada em conjunto. Os dias mais importantes foram os que passei convosco e já não me lembro porque não é preciso para saber que foram bons. As pessoas mais bonitas são as que me fazem sentir falta de mim como sou quando estamos juntos. A solidão mais profunda é aquela que a vossa mera existência arranca de mim.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Respira o meu sol

Respira o meu sol
enquanto não começo a chover.
As ruínas estão tranquilas
e o pó que eu não limpava
assentou.

Houve momentos em que não senti necessidade de mentir
para me acalmar.
A tua respiração suave bastava-me.
Era no cabelo que tinhas o barulho do vento.

Sem nenhuma tempestade,
sem sequer precisar de chover,
parou.
Está silêncio, mas não fiques para ouvir.

Sol em mim.

É depois das noites sem dormir que penso melhor. Talvez porque pense mais em linha recta. O cansaço não permite as contracurvas costumeiras. O sono, ou a falta dele, transforma-se num tipo de energia diferente. Distante. Fico ausente do tempo real embora o espaço fosse familiar, demasiado até. Os óculos escuros protegiam-me os olhos do vento enquanto observava o vai e vem das nuvens, de barriga para cima. Passam-me trezentas imagens pela cabeça numa sucessão descontínua. O tema era sempre o mesmo. Estava feliz. Não, é exagero. Talvez me sentisse contente. Estava bem. Sim, por uma vez seria verdade e não o diria apenas por hábito. Não precisava de um espelho para ver que os olhos me brilhavam e dei por mim com um sorriso aparentemente indelével nos lábios. Não foi de propósito. É que me sentia bem. Meio febril talvez, mas isso seria das horas sem dormir acumuladas. Estava verdadeira. Estava real. Que seria feito daquela raiva toda que me apertava os dentes ainda na semana anterior? Agora fazia-me sorrir também. "Passou." Que grande calma para tanto vento. Quem me visse assim desgrenhada poderia pensar, sem dúvida, em loucura, em alucínio, mas confesso que há muito não me sentia tão sã. E não importava se no dia seguinte fosse a vez de me passar o bem-estar. Um dia bom é combustível para muito mau tempo. Nem a chuva me podia derrotar - porque nesse dia não me esqueci do chapéu e tinha vontade de andar.
E de súbito uma rajada de vento mais forte obrigou-me a fechar os olhos pois nem os óculos eram o suficiente para os proteger. Senti algo a embater no meu peito e a cair-me no colo. Abri os olhos de novo e peguei-lhe. Fiz girar entre os dedos o pequeno objecto quadrado e cinzento e soltei uma gargalhada. Uma tecla de computador: o número um e o ponto de exclamação. Trauteei para dentro: Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida! No bom sentido é claro. Porque os sinais que me batem no peito só significam aquilo que eu quiser. O significado altera-se mas o sol está mais quente.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Sidewalk

i've been walking for so long
i couldn't tell my feet were moving
until i stopped
no need to think
but still i do
i keep following the same path,
the path to you
everytime
i bump into the same people
everyday
i trip over the the same stones
i kick them and keep walking
till i can't breathe
i walk the ways of my mistakes
i know it's the only way
i move out of the dark
and still can't see a thing
you can't see me either
though i don't hide
and i'm right here
walking by your side.

segunda-feira, 10 de março de 2008

História de ir dormir.

Agarra-te à cadeira com as duas mãos, com força. Articulações lívidas, lábios reduzidos a um traço escuro. Só as pontas dos dedos dos pés tocam o chão que aos teus olhos se movimenta numa dança espiralada. O fumo dos cigarros faz-te arder os olhos que, lacrimejantes, procuram um espaço limpo entre o nevoeiro cerrado. Sim, é a cadeira a tua tábua de salvação. Agarra-te bem para não caíres a esse mar de beatas pisadas e sujidade negra e húmida. O murmúrio do vento nas ondas transformou-se num medonho troar de navios a embater em rochas. Aceitas a inevitabilidade do naufrágio e é com tristeza que ouves os gritos dos marinheiros ébrios que te rodeiam. Ao longe, ao longe, por entre as ondas e o nevoeiro, quase debaixo de água, ouves as gargalhadas estridentes e as palavras rudes do convés num calão arrastado por línguas entarameladas pelo rum. Piratas! Piratas! Sois uns falsos! Esse rum não é puro. A coca-cola transforma-vos em putas de dentes podres e hálito fétido. Onde estão agora as vossas espadas? Não vejo facas nos dentes, nem coragem nem inteligência em vez dela. Os saltos altos vermelhos batem no chão e ecoam como tocos de madeira. Amputaram-vos o brilho. Mas não existe talento de pau. Que pena, que pena! Tanta beleza estragada. Que cheiro a vinho azedo. Ainda ninguém esfregou o convés esta noite. Procuras no horizonte, apesar de não conseguires subir à gávea com o balanço violento das ondas, por uma aberta no céu negro de nuvens e trovoada. E de repente, lá está ela. Longos cabelos loiros, queimados pelo sol, sacudidos pelo vento (apesar de não haver brisa e o ar estar abafado) e a brilhar com os reflexos da luz (apesar de metade das lâmpadas no tecto estarem fundidas) e olhos grandes como faróis a iluminar a tua arriscada trajectória pelo meio da tempestade. Uma sereia de barba aos caracóis. Ouves o seu canto mavioso e preparas-te para o seguir. Largas uma mão da cadeira e ergues lentamente o copo até aos lábios já tingidos de roxo pelo vinho. Bebes de um trago o resto do líquido, como pirata intrépido que hoje és. Ergues-te da cadeira mais rápido do que devias, para ires até ao balcão pedir outro copo e teres um pretexto para meter conversa com a sereia lá do fundo. E é então que te lembras que as sereias cantam para os marinheiros atraindo-os para o fundo do mar. Elas gostam da companhia dos cadáveres que enfeitam os seus jardins subaquáticos. Apercebes-te do teu erro tarde demais e atiras o rosto para o lado, vomitando os sapatos vermelhos do marujo mais próximo. Putas das sereias. Só queres o teu beliche. Arrastas-te dali para fora, para onde o ar é um pouco mais puro. Já passou o enjoo mas sentes a cabeça pesada. Levantas os olhos do chão com esforço e é com enorme surpresa que olhas em teu redor. Por todo o lado, estranhas criaturas passeiam no meio do escuro. Corpos com mais membros que o normal, plumagens de muitas cores e jubas estranhas. Grasnidos, roncos, latidos, zurros e toda uma selva de gritos soltados pelos animais mais exóticos e assustadores que alguma vez sonhaste ou imaginaste. Estás agora numa floresta encantada. Coragem. Hás-de conseguir encontrar o caminho para casa pelo meio das árvores e bestas coloridas. Caminhas com cuidado sem olhar muito para lado nenhum, não vá surgir alguma fada traiçoeira.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Mar verde como relva verde como mar

Alguns versos soltos para aliviar o tédio. Como num sonho. Queria falar sem parar. Sem ninguém a ouvir. Sem ninguém a olhar. E chorar enquanto falo, deixar as lágrimas correr, os olhos como torneiras estragadas, dois rios que não correm para lado nenhum porque não tenho mar. Percorrer margens verdes que nunca acabam e nunca ter de chegar. Não quero chegar mas também não quero ficar. Deixa-me andar por favor. Só quero andar sem ter de escolher o caminho. Sem ruas, sem passeios, sem semáforos, sem nada que me obrigue a parar. A sério que não estou à procura do mar. Sei onde ele está e vou na direcção contrária. Deixa-me afogar. Posso fazê-lo em terra. Até posso boiar. Ou será que assim se chama flutuar? Não. Eu sei que sentada no chão estou a boiar. Lá porque tu não vês... Não estou nada a chorar. Era mentira. Eu não choro. Nunca chorei. E também não minto apesar de não conhecer a verdade. Sei lá o que isto é. Chama-lhe coisas se quiseres. As tuas mãos não tocam no mesmo que eu nem ouvimos a mesma música nem vimos o mesmo filme nem gostamos das mesmas ruas nem sorrimos das mesmas coisas. Mas se tocamos coisas e podemos ouvir e podemos ver e sabemos gostar e sabemos sorrir, então é porque somos iguais, à nossa maneira. Mas lá porque estou a escrever não quer dizer que esteja a pensar em ti. Quem és tu? Quem és tu? Também não sabes de mim nem onde estou. Não vou deixar que me voltes a encontrar. Se vais sair fecha a porta quando saíres porque é para isso que ela aí está. E não digas adeus porque também já não disseste olá. Desilude-me mais. Eu ensino-te.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Bicho de sete cabeças.

Confesso que perdi o controle algumas vezes. Vezes em que a cada passo que dava conseguia sentir o medo a aumentar dentro de mim. Mas sem conseguir parar ou voltar para trás. Como um soldado que se aproxima de terreno inimigo. Sabe que não pode deixar o pânico vencer ou é o fim. Ou imagino que seja. Embriaga-se em adrenalina e por alguns momentos esquece-se de quem é ou como se chama aquela terra. Ou imagino que se esqueça. E só quando sai é que pensa sobre isso. Se é que pensa. Se é que sai. Já me esqueci de quem sou. Durante milésimos de segundo, ou em medidas fora do tempo, o meu cérebro não se inflamou de pensamentos. A minha epidemia privada hesitou. E quando voltei a pensar quis desafiar as leis e códigos com que estou programada. Quis desafiar-me. Mas a minha racionalidade doentia vence sempre. E eu fico sem saber se ganhei ou perdi.
Sou um bicho de sete cabeças. Todas servem para pensar. Não, sete não. Mais. Ainda há mais. Nunca tem fim. Não vai acabar. Não há espada que mate este estar. Vou ficando. A manhã acabou de raiar. À minha volta todos dormem. Sento-me na varanda. Subo o parapeito, pés no telhado. A luz não me incomoda, mesmo acabada de acordar. Deixo a pele do rosto absorver os raios de sol. Fumo um cigarro enquanto penso. E trauteio uma canção. Baixinho, porque gosto do mundo adormecido. Penso na tua beleza e espero que não tenhas noção. Porque é assustadora e tu pareces ter os pés assentes no chão. Lembras-te dos teus sonhos quando acordas? Hoje lembrei-me de ti. Desculpa, queria dizer que não me esqueci.

domingo, 20 de janeiro de 2008

É isto que sinto no meu labirinto.

Perco-me aqui. A luz não é muita e eu não sei o caminho para voltar. Já me embrenhei demasiado. Já fui demasiado fundo. Já me perdi. O meu passo é firme e decidido, vou em frente, mas não sei para onde estou a caminhar. Vou como cega. Não sei onde vai dar esta rua. Cá fora é tudo igual. Tudo igualmente cansativo. Mas há qualquer coisa que brilha algures e é para lá que quero ir. Quero entrar nesse brilho mas às vezes pergunto-me se não é debaixo da pele que devia procurar. Se tenho uma porta ainda não descobri como se abre. Por um momento tremi sem ser do frio, embora o ar me arrefeça. Acho. Talvez fosse tudo mais fácil se não existissem palavras. Ou talvez isso me deixasse imóvel. Mas as que tenho dentro de mim são demasiadas, em torrentes ininterruptas, abruptas, cruéis, dolorosas. Como se nas veias me corressem pedaços de vidro. Pedaços de qualquer coisa estilhaçada. Ou qualquer coisa ainda por nascer. Talvez ainda nem saiba o meu nome. Só tenho palavras debaixo da pele. Quase só. Sou como uma torneira estragada estupidamente à espera de conserto. Não há. Por isso deixo-as correr em silêncio. À espera. Queria extraí-las todas de dentro de mim, com uma precisão cirúrgica. É isso que tento. Ou talvez o esforço seja ridiculamente ínfimo. Não gosto de mentir. Eu já disse que não sei onde fica a porta. Só nunca mo disse olhando-me nos olhos. Não há espelho onde isso caiba. Vou virar aqui. Talvez seja por aqui. Continuo sem saber onde estou. Não reconheço nada. Ou recuso-me a reconhecer. É tudo novo e desconhecido e é tudo velho ao mesmo tempo. Fecho os olhos durante mais tempo que o normal quando pestanejo. É que me cansa o que vejo.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Bem-vindo, viajante.

Senta-te e descansa os olhos nas minhas palavras. Que elas te pacifiquem. Que tragam calma ao teu turbilhão. Ou que façam mover os êmbolos parados e ferrugentos do teu coração. Que te façam nascer ou te deixem morrer. Que possas sorrir ou que te levantes e saias. Que te coces preguiçosamente ou que bocejes sem pudor. Que te enoje, que te comova. Que abra uma ferida qualquer ou tempere a que já aí estava. Dá um murro. Suspira. Olha por cima do ombro. Que se te embacie o olhar. Que se te suavizem as palmas das mãos. Toca nos teus lábios. Afaga um joelho. Descalça-te. Despe-te. Tapa-te se ficaste com frio. Arrepia-te e logo a seguir transpira, do calor. Que te dê vontade de foder. Qualquer coisa. Merda, reage porque eu não posso sair daqui para te bater.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

With great power comes great responsability, já dizia o tio Ben.

Suspiro atrás de suspiro, ergui um muro de lamentações. Quatro paredes de tijolo em meu redor. Esqueci-me da porta e descurei as janelas. Mas ainda posso olhar para cima e substituir mais um suspiro por uma inspiração profunda. Quando quiser posso saltar.
Nunca ninguém me disse que o mundo é bonito, fui eu que decidi. Fui eu que fiz os meus filtros. Ninguém precisou de me ensinar a sorrir. Sempre me deixaram escolher. Eu escolhi quando trocar de direcção. Eu escolhi quando voltar atrás. Eu escolhi quando parar. Eu escolhi quando sonhar. Eu escolhi o que era para sempre e o que tinha de acabar. Fui eu em tudo. Estive sempre de olhos abertos sem me dar ao luxo de pestanejar porque assim o quis. E quando o peso da responsabilidade foi tanto que me senti esmagar também gatinhei, rastejei um pouco até. Que me importa esfolar os joelhos ou sujar as palmas das mãos? Depois passa. Já passou. Está a passar agora mesmo enquanto escrevo. Sim, o poder é meu e é grande. Sinto os meus nervos esticar. Não tenho limites. Se quiser posso voar. Mas não quero. Não. Gosto da minha calma e nem costumo arrastar os pés. Mas se for preciso arrasto. E se for preciso choro e faço doer. E dói e arranha a garganta quando grito. Mas grito se tiver de ser.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Fim

As minhas mãos estão quentes
apenas para aquecerem as tuas.
As minhas mãos existem
apenas para se enlaçarem nas tuas.
Tenho lábios apenas para que exista
a possibilidade de te beijar.
Cada centímetro da minha pele
tem como único propósito
ser tocado por ti.
Os meus pulmões só funcionam
para eu sentir o teu cheiro.
Os meus olhos vêm somente na tua direcção.
O prazer que me dá a minha beleza
é o que tu sentes quando me vês.
A única utilidade dos meus pés
é caminharem até onde tu estiveres.

Deixo de existir quando não estás.

A cada coisa sua finalidade:
Tu és o fim de tudo o que eu sou.

sábado, 13 de outubro de 2007

Choras entre dentes

Choras entre dentes
respiras devagar
vejo-te chorar
e sei que tremes quando mentes.

Passas a língua nos dentes
cheiras o ar
ouço-te silvar
e não acredito no que pensas que sentes.

Ranges os dentes
choras a dormir
sem te lembrares no dia a seguir
e nem eu deixo que tu tentes.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Pequenos deuses

Pequeno Narciso
que se adora apenas
a si mesmo
esperando o dia
em que poderá adorar,
talvez,
outro alguém.
Os seus filhos, talvez.
Pequenos rebentos de Narciso,
rebentos de mais ninguém,
pequenos deuses
de nariz redondo
e olhos macios.
Então, ele será Zeus
e eles serão
os seus pequenos
Hermes, Afrodite
e Zagreus.
Por ora, espera.
Espera pela Hera,
que não passa ainda de um rebento
também,
espera que lhe cresçam as folhas
verdes e persistentes
e os cabelos castanhos.
Espera
que ela o envolva com os seus braços ondulantes
delgados e flexíveis
que lhe aperte o peito
e lhe corte a respiração
que lhe aperte a garganta
e lhe faça perder a voz
que lhe aperte a cabeça
e o faça perdê-la.
Que o aperte até deixar de se sentir
para além da pulsação
como se fosse uma massa de sangue apenas
flutuando
centímetros acima do chão.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Eu sei.

Eu sabia. Sempre soube. Sabia da fragilidade do coração. Sabia da natureza do amor. Sabia das consequências dos actos. Sabia das mentiras. Sabia a verdade. Sabia que os rios não secam de repente. Sabia que a chuva vinha das nuvens. Sabia que o chão podia tremer. Sabia que o meu castigo seria ser esquecida. Eu sabia, eu sabia. E foi por saber que doeu ainda mais a dor que infligi. Foi por saber que fugi. E agora sei que não deixa de arder. Sei que a cicatriz não existe porque a ferida nunca chegou a fechar. Nunca deixou de arder. Acumulo sal nos cantos da boca e sei que não tenho o direito de lavar o rosto. Sei que não tenho o direito de ainda desejar, mesmo às escondidas.
Sei tanto, tanto, tanto.
Mas dou por mim ainda a fazer as mesmas perguntas, numa repetição exaustiva. Incansavelmente. Porque é que há tanto tempo atrás, da última vez, engoli a poção da invisibilidade para não me veres tremer, para não me veres deitar no chão, para não me veres cair, para não me veres gritar, para não me veres arrastar os pés em silêncio, para não me veres fugir outra vez, para não me veres esconder as lágrimas, para quê? Ainda conheço a tua nuca mas mesmo quando sei que não és tu permito-me duvidar por uns instantes, embriagando-me no prazer culpado que a tua presença fantasma me traz. Porquê? Leio as cartas que nunca chegaste a enviar. Ouço as palavras que nunca cheguei a dizer. Repito-as baixinho ou para dentro, conforme estou sozinha ou não. Para quê? Pergunto-me se ainda tens a mesma maneira de sentir, a mesma maneira de olhar. Ainda somos iguais? Ou já mudámos demasiado? Os rumos podem ser assim tão cruéis com a essência? Porque não me calo por dentro como por fora? Ou porque não falo do que sinto? Porque não te faço lembrar? Ou porque não esqueço também? Eu sei... É o meu castigo. Há-de durar tão para sempre quanto eu.
Estamos mortos há tanto tempo mas nunca parámos de ressuscitar sem que no entanto estejamos alguma vez realmente vivos. Está tudo na minha cabeça, eu sei.
Nunca tive dúvidas no que te diz respeito. Bastou a primeira palavra para saber.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Silêncio, Escuridão, E Mais Nada.

Eu encostava a cabeça no teu ombro e tu encostavas a tua cabeça na minha enquanto me davas a mão e os dois partilhávamos uma escuridão e um silêncio rompidos apenas pelo queimar dos cigarros.
E mais nada.


quinta-feira, 14 de junho de 2007

A Prata da Casa

Pesava-me. Doía-me. E sangrava frequentemente. Para lhe acalmar as tormentas, segurava-o com as mãos. Mas bastava qualquer surpresa, um pouco mais forte, para que o deixasse cair.
Esta fragilidade oprimia-me. Constrangia-me. Não sabia o que lhe havia de fazer. Onde o colocar. Como lhe tocar. Ou deixar que lhe tocassem, mesmo ao de leve. Ou se confiá-lo a alguém merecedor. Se tal existia. Era preciso dar-lhe um rumo. Arrumá-lo.
E um dia a resposta chegou. Fi-lo atravessar uma corrente de prata e prendi-a em volta do pescoço. Agora pende-me sobre o peito e dali não mais sairá. Está seguro, até que eu o perca, como perco às vezes a cabeça, ou até que a corrente se parta. Aqui fica o meu coração de prata.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Sala de Espera

O tecto de estuque branco incomoda-me. Deixa-me nervosa. Querubins por entre motivos florais estendem-se sobre a minha cabeça. As brechas que denunciam a antiguidade, assim como as asas que começam a desvanecer-se, fazem-me recear que uma rosa ou um anjo me caia em cima testa. Não consigo perceber os gestos dos meninos gorduchos porque estão curvados (talvez sob o peso das asas brancas) e não têm mãos. Arrepia-me o ranger das tábuas de madeira envernizada, o verniz a disfarçar o desgaste do soalho, sem o esconder. O chão vibra com o vaivém dos automóveis lá fora. Tudo me parece apontar para uma calamidade. E no entanto, o sol entra à vontade pela janela de portadas de madeira abertas, também elas brancas, e aquece-me as costas. A sala devia ser acolhedora, com as suas cadeiras azuis almofadadas. Mas o tecto sem candeeiro perturba-me. Talvez seja apenas do meu nervosismo. Não devia ter bebido outro café.

quarta-feira, 28 de março de 2007

Uma fonte no deserto.

O chão à minha volta está seco. Se antes era lama, agora o sol endureceu-o. Está gretado do calor e as fissuras formam estranhos padrões. Não vejo nada senão isto, quilómetros em redor. Perco a noção das distâncias. A solidão é absoluta e o silêncio todo-poderoso. Primeiro sento-me e depois deito-me. Estico o corpo contra o chão quente e áspero. Fecho os olhos mas continuo a ver o sol através das pálpebras, vermelho e penetrante. Sinto os seus raios atravessar-me a pele, queimando-me os olhos, as pernas e os braços nus. Deixo-me invadir por sensações que não sei definir e experimento compreendê-las. Seria um réptil se a minha pele não fosse branca e frágil. E estaria bem se não fosse a secura na garganta e um subtil receio de contrair cancro da pele, receio que começa a tomar conta do meu cérebro aos poucos. Já não consigo concentrar-me nas sensações. Distraí-me delas. Por isso decido levantar-me. Primeiro sento-me e inspiro a ligeira aragem que passou por mim, breve e rara. Não consigo dizer a que cheira o deserto. Talvez não cheire a nada. Como me poderei recordar depois? Talvez o calor me faça lembrar. Agarro-me a esta esperança e ergo-me então, muito devagarinho. Começo a caminhar de costas voltadas ao sol, estudando a lentidão dos meus movimentos, planeando a forma de dar cada passo, fascinada pela minha graciosidade, por ser só para mim, já que estou sozinha e ninguém me pode ver. Nem eu me vejo, apenas me imagino, talvez por isso esteja especialmente bonita hoje. Observo os meus pés, que se movem quase em câmara lenta, e os braços, ora caídos ao longo do corpo, imóveis como o ar; ora oscilando, ondulantes como o calor. Quase flutuo, mas realmente está demasiado calor para isso. Quando chego à fonte, inclino-me calmamente para a água e bebo dela sem pressas, saboreando o que não tem sabor nem nome. Como se ninguém me esperasse e eu não tivesse mais nada para fazer.




"Pois eu," disse o Principezinho para si mesmo, "se tivesse cinquenta e três minutos para gastar como quisesse, dirigia-me devagarinho para uma fonte."

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Para a Finlândia, com amor.

De passo firme, como sempre. Sobrancelhas ligeiramente franzidas, da apreensão, do receio, da ansiedade de pela primeira vez partir à aventura sozinho. Que é como quem diz sem os companheiros de aventura do costume. Porque sozinho não estava. Um amigo do lado, um elo de ligação ao que deixava para trás, ainda que apenas por algum tempo, e um companheiro, também, dos bons e maus episódios. Mas como eu ia dizendo. De sobrancelhas franzidas. Aquelas sobrancelhas fantásticas que durante tantos anos o incomodaram; a adolescência pode ser cruel. Mas a verdade é que no novo país elas faziam parte do conjunto tão exótico que agradava sobremodo às raparigas. Sempre se subestimou, o rapaz.

Tão longe que estava agora. Teria algum dia percebido verdadeiramente o seu valor? A importância desmedida que tinha para umas quantas almas perdidas? A forma como quase sempre dizia a coisa certa na altura certa? E como sabia pedir desculpa na altura certa se dizia a coisa errada. Se por vezes usava o orgulho como escudo, quase sempre sabia ceder à humildade. Rapaz de gestos exuberantes e olhar tímido. Homem de palavras sábias e pensamentos puros. Hesitante na expressão das emoções apaixonadas. Cheio de contradições, como uma verdadeira pessoa, e sempre tão certo, como mito a idolatrar.

Os adjectivos abundam, cansativamente. Para quê desenhar em palavras aquilo que apenas se sente? É tão mais difícil que um abraço. Mas se o corpo não está presente, é preciso abraçá-lo com verbos.

Deixaste para trás um vazio tão grande, tão grande, tão grande, tão grande… Não há nada que o possa preencher. Nem cartas de nove páginas que façam chorar, nem fotografias em situações inusitadas que façam rir. Só o teu regresso. Enquanto isso, vamos balbuciando entre cafés e cigarros que perderam a graça sem ti a reclamar do fumo e a alertar contra as doenças do pulmão, “Tenho tantas saudades…”, “Faz tanta falta…”, “Que vai ser de nós sem ele?”, “Ainda só passou um mês e parece um ano… Acho que não aguento mais dois…”, “Vamos ter com ele… Podíamos, sei lá… apanhar um avião…”, “Queria tanto que ele estivesse aqui para ver isto…”, “O João é que ia achar piada…”, “Vamos dizer que temos uma doença terminal e precisamos que ele volte…”

A nossa doença terminal chama-se mesmo saudade. Mas não é bem terminal, vive em constante estado de evolução, e apesar de sabermos que se agrava a cada dia que passa, a cada fim-de-semana em que quase não nos apetece sair porque sem ti não é a mesma coisa, também sabemos que tem cura. Sabemos que quando terminar vai ser porque te temos de volta. E torna-se doce a saudade. Porque significa apenas como és elementar, meu caro Watson.

Contar-te os meus segredos por e-mail não é a mesma coisa. Mas sei que quando voltares vou gostar de descobrir a mudança em ti. O crescimento. As tuas novas compulsões (não me digas que são as mesmas?). Vais ter tanta coisa para nos ensinar. Não espero que tragas respostas para a vida, nem para o amor, por mais que penses neles. Mas quando nos pudermos rir todos juntos outra vez, e voltar a discutir incansavelmente as eternas questões e os eternos problemas que desde que existimos nos assolam as conversas, estes três meses vão ser a melhor coisa que nos aconteceu. Porque está a ser a experiência da tua vida, e se é importante para ti, é importante para nós. São uns chatos, os amigos. Sempre colados às nossas ideias. Parece que não têm vida própria ou o camandro.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Cardiopatia

De novo o frio. Dez anos de introspecção e uma breve aventura pelo calor humano. Calorosidade. Abraços, beijos, risos e conversas íntimas. O toque. Amar o próximo. Entreajuda. Eu dou e recebo. Tu recebes e devolves. Alguns anos de trocas simbólicas de afectos e objectos. Eventualmente anulam-se. Demasiadas desilusões. Evitar ser arrogante esperando dos outros o que é natural para nós, ou parece ser. Suportar as desilusões como erros humanos perfeitamente aceitáveis, ainda que entristecedores - e de novo a arrogância, de ser melhor do que isso. Se não desiludes ninguém não és real, não existes. Não basta pensar. Arrefece-se então. Que a desilusão é fria. Este é o meu espaço seguro. A minha bolha de anticorpos; o sistema imunitário transcendente. A necessidade dessa distância para respirar. Distância dos cheiros e do calor. Nojo dos corpos e dos sorrisos. É tudo podre, infecto. Lavar as mãos já não é suficiente. Ao contacto humano salivas, mas não é da fome, é do vómito. Apetece viver mas estar morto para o mundo. Arrastas-te no meio das multidões e tentas desviar-te da sensação epidémica do toque. Tudo te cansa porque tudo te parece inútil. Toda a gente precisa de ajuda e clama por atenção mas ninguém se consegue ajudar nem sabe estar atento. Estamos todos surdos e olhamos em frente. Se um coração se fere tem de ser protegido para não infectar. Seria desagradável que a gangrena levasse à amputação. Um pouco de desinfectante, uns séculos de repouso, ou uns anos, quem sabe, e a reabilitação é possível. Entretanto já chega. Arrebenta a bolha.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Da espera ao frio.

Porque não tinha nada para fazer enquanto esperava, li um poema que tinha no bolso. Da ideia de fazer o tempo passar, já que morrer nunca morre. Comoveu-me o poema porque falava de solidão, entre outras coisas e entre nada, e eu sentia-me só. O frio também não ajudava. Estava um frio dos danados, já que dizem que no inferno faz calor. Os meus dedos nus, gelados ao frio, mal sentiam as folhas por entre si. E tinha de ler as letras cortadas entre os cabelos que o vento me empurrava para diante dos olhos. À bruto. Ah, bruto! Vento em bruto, e do frio, gélido, que é mais bonito, menos escuro. O gelo é mais claro que o frio. Mais branco, por causa da geada, ou até mesmo da neve. Mas ali até estava sol. Eu só estava à sombra porque escolhi sentar-me no banco de pedra cinzenta clara, a dar para o azul. E o azul ainda era mais frio que o branco, se calhar porque estava à sombra. E à minha frente estava um tapete de relva enorme. Muito comprido. Estava verdinho e bem tratado. Devia ter almoçado melhor que eu, que a sopa só estava morna. E batia o sol na relva. Sem força, devagar. Meigo como uma festa. Apeteceu-me ser um bicho para me deitar ali e espreguiçar-me. Quem sabe se dormir. Talvez sonhar. Mas morrer não me apetecia muito. Se bem que estava a morrer de frio. Mas não fui bicho, porque era pessoa e tive de fazer de conta que era isso mesmo. Fazer de bicho de conta e enrolar-me era melhor, mas não podia ser. Estava um bocado confusa, devia ser do sono, ou das palavras na cabeça que não me deixaram dormir. E levantei-me meio à toa, sem saber bem onde ia, mas só soube que não sabia no fim de me ter levantado e dado uns passos para lado nenhum. Já não me podia sentar no mesmo sítio agora, então. Dei uma volta ao bilhar grande, que é como quem digo à relva verde que tanto me apetecia. Vi que as escadas também estavam ao sol e fui lá. Eram brancas, deviam estar menos frias que o banco. Tinham um bocadinho de verde nos interstícios da pedra, da humidade. Do frio. Claro, eram de pedra, estavam tão frias como o banco. Mas pelo menos agora, então, o sol batia-me nas costas, se bem que eu não me importaria que fosse com mais força, que continuavam as minhas mãos a enrugar-se com o frio. Mas já que ali estava deixei-me ficar. A esperar o que faltava. Já não era muito e eu dali via o caminho. Ainda pude reler o poema, sem me preocupar. E pelo menos não choveu.