sábado, 7 de fevereiro de 2009

Fim de um Inverno.

No meio da confusão dos corpos era difícil distinguir onde estava a verdade. Fechava os olhos e era como se os mantivesse abertos. A sucessão de imagens que lhe cruzavam a mente, fazendo o sangue subir-lhe às faces, correspondia à velocidade frenética de movimentos que a rodeavam. Era apenas uma rua cheia de gente com pressa para passar, pouco se importando com os encontrões que dava ou recebia ou com os calcanhares que pisava; mas parecia um quarto fechado, de janelas embaciadas pelas respirações sincronizadamente ofegantes. Nunca uma multidão lhe parecera tão obscena. Nem mesmo os grossos e compridos casacos invernais conseguiam esconder a nudez insípida e desinteressante a que estavam condenados. Apenas o conforto de um rosto belo no meio da orgia de transeuntes lhe pode acalmar a repugnância. Caminhava como que acima da multidão. Em perfeição. E vinha a sorrir, muito ao de leve. Muito ao de leve, cruzou o ombro com o seu. Foi um roçar delicado, como o sorriso, mas o suficiente para que deixasse de lado o seu profundo desprezo pelo mundo, apenas por um instante. O seu coração dorido deixou de arder por um instante, só por constatar que ainda existia uma réstia de gentileza no mundo. Talvez valesse a pena respirar mais um pouco, talvez até encontrar o próximo sorriso perdido na rua que restaurasse em si a vontade de caminhar devagar. Mesmo sem abrir o guarda-chuva.

*

“If love is shelter/I’m gonna walk in the rain”

If Love Is a Red Dress (Hang Me In Rags), Maria McKee

1 comentário:

QT disse...

Já andava com saudade de te ler..=D
Muitas vezes os desaparecidos acabam por reaparecer..

Bjs