De pé, junto à janela, fumava um cigarro para fingir que fazia algo mais que pensar. Na verdade acabava por fazê-lo de facto. Mais estupidamente, acabava por pensar no facto de o fazer afinal. Algo mais que pensar. De tal forma que o cigarro e o pensamento se confundiam. E por um instante, pensou noutra coisa. Mas depressa regressou ao fluxo de ideias que a trouxera à janela, àquele cigarro. Um paradoxo de impotência total e controlo absoluto dominava-lhe os sentidos. Tinha consciência da existência física dos nervos, que deixavam de ser uma ideia abstracta para se tornarem dolorosamente palpáveis. Não estava a ser uma noite tranquila. Deixou que o fumo lhe invadisse outra vez a boca, a garganta, os pulmões. E não existia ar. Nem fumo, nem nada. Era vácuo dentro dela, selada. Sentiu a boca secar, a garganta arranhada, os pulmões pesados dentro do peito, cansados. Engoliu um pouco de água, do copo que segurava com a mão esquerda, e depois mais um pouco, até acabar. Sentiu o líquido fresco a bater pesadamente no estômago vazio. Não tinha fome. Agora já não. Imaginou o vazio da metáfora encher-se de fumo, mais uma vez. E o fumo era raiva. Uma raiva morna e suave. Porque só agora compreendia onde estava o seu verdadeiro erro. Uma falha de carácter que já tinha admitido há tanto tempo e só agora, só agora via que nunca tinha sido tão grave como com ele. Estúpida. Sentia-se estúpida. Ao mesmo tempo, sentia a invariável saciedade que lhe trazia a compreensão. Apagou o cigarro e acendeu outro, imediatamente. Ela não precisava de ser superior. Todas as vezes em que suportara a crueldade de uma guerra psicológica cuja arma era o terrorismo emocional, todas as vezes em que condescendera, em que não retaliara - já lá iam os tempos em que gritava e lhe tentava bater, assim como o histerismo silencioso da adolescência interna tardia – em que deixara passar, por acreditar que podia ser superior a tudo e sobreviver, foram de uma cegueira profunda. Que não pôde decifrar nesses tempos a arrogância que sempre apregoara tão humildemente, por ser tão melhor que os outros e conhecer tão bem a sua própria humanidade. Vontade de se esbofetear. Agora via que nunca tinha sido pior do que com ele. Na verdade, comparativamente, a condescendência para com o resto do mundo era absolutamente insignificante. Sim. Desta vez percebia o que tinha de fazer. Não precisava de ser superior. Ele é que tinha obrigação de ser uma pessoa melhor. Tão bom quanto ela, no mínimo. Não lhe admitiria nada que não admitisse a si mesma. Daí em diante ele não seria apenas humano como todos os outros, que cometem erros. Não. Isso não seria suficiente para lhe justificar as más acções. Nunca voltaria a perdoá-lo. Porque o perdão era merecido por quem lhe mostrava arrependimento. Aliás, não só não voltaria a perdoar espontaneamente, como sentia todas as velhas feridas a reabrir. Retirava-lhe todos os perdões antigos. Todas as feias recordações que tinha dele nadaram até à superfície. E limpando uma, mais rebelde, da face, apagou o segundo cigarro e abriu a porta do quarto. Com um sorriso extraordinariamente psicótico nos olhos e na boca, disse-lhe: “Eu sou a Nicole Kidman. Tu és Dogville.” E saiu de casa, sem sequer se preocupar com o facto de ele nunca ter visto o filme.
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2 comentários:
Duas semanas sem "novidades" faz o tempo arrastar-se. Porém existem esperas que valem a pena.Esta é uma delas..=)
Parabéns, por tudo o que de interessante sai da tua escrita..e gostei mt da referência final a Dogville.
amei o blog...vou fumar o meu segundo cigarro pa janela
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