segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Poema de não conseguir parar

não consigo parar
é como se a qualquer momento
as palavras fossem rebentar
boca fora
e eu não as pudesse travar
vejo-me tentar
cobrir a boca com as duas mãos
olhos esbugalhados
pânico de o dizer
pânico de me ouvir
pânico de que me ouças
ou de que não entendas
de que me saiam apenas gemidos abafados
entrecortados
ou gritos ininteligíveis
esganiçados
se a luz do dia mostrar o que eu quero esconder
(não, não
por favor, não)
está-me nos olhos nebulosos
prestes a cair
a todo o momento
está-me nas mãos nervosas
prestes a saltar
a todo o momento
e eu não consigo
não consigo parar
fico num coma simulado
para não mostrar nada
para não denunciar nada
porque qualquer movimento é perigoso
qualquer palavra é potencialmente desastrosa
preciso fazer-me de morta
para não ser comida viva
pelas palavras
elas tentam engolir-me
submergem-me
afogam-me
e não são as palavras
é o que está por detrás delas
em silêncio
no escuro
mas quer sair cá para fora
o silêncio quer sair
o escuro quer sair
cabeça fora
palavras fora
boca fora
olhos fora
mãos fora
corpo fora
tudo fora
morro aqui

Poema de um breve sorriso

sorri
enquanto podes
brevemente deixarás de ter coragem
brevemente entrará o negro
brevemente poderás ver
a verdade por detrás do sorriso
a inocência enganosa
a doçura perversa
as garras cor-de-rosa
as presas afiadas
os espinhos à flor da pele
o negrume dos olhos
por entre o cândido verde
está no centro
o núcleo incendiário
sedento de devastação
está por dentro
a teia de arame farpado
os nós sinistros
que não vêm nos livros
ou em qualquer ilustração
brevemente os cabelos ao vento
estarão carregados de electricidade
brevemente as delicadas mãos
estarão crispadas nos braços de uma cadeira
brevemente esse sorriso
vai esgotar-se
vai esgotar-me
vai esgotar-se-me
até quando ficarás sem ver?
até quando poderás não sentir?
até quando acreditarás não ser?
até quando poderás sorrir?
brevemente
brevemente, coração.

Gelo

gelo
à superfície
gelo
cola e queima
ousaste tocá-lo
e não te podes libertar
ou rasgas a tua pele
a tua pele pela tua vida
a pele pelo coração
gelo
arde e corta
queima e rasga
prende e mata
chora pela tua vida
chora pela tua pele
salva a tua pele
e chora
para te libertares
o calor das lágrimas
é a única coisa
a salvar o teu coração
do gelo

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

As coisas simples.

Quando eu era criança, tinha várias formas de me entreter. Como todas as outras crianças descobria o fascínio das coisas simples. O meu simples respirar era uma coisa complexa e deslumbrante. Podia inspirar depressa ou devagar, experimentando o excesso ou a falta de oxigénio, podia respirar pelo peito, pela barriga e até pela cabeça ou pelos pés. Dormir também não era apenas dormir. Sentia-me grata pela facilidade com que adormecia e por esta ser igual àquela com que acordava. Antes de fechar os olhos, deitada, sentia o sangue percorrer o meu corpo todo, incrivelmente feliz por poder senti-lo, no escuro. De manhã, surpreendia-me com os sonhos extraordinários que tinha sonhado enquanto dormia. E por tudo isto, gostava de dormir. Era algo de grandioso, dormir.
Agora, às vezes, deixo-me afundar na complexidade de algumas coisas. Às vezes, perco-me numa espécie de labirinto de mim mesma. E ouço alguém dizer que gostava de voltar ao tempo em que as coisas eram simples. E eu penso, quando é que as coisas alguma vez foram simples? Se o mais pequeno gesto, a mais insignificante realidade, estiveram sempre carregados de um significado esmagador? Se respirar nunca foi apenas respirar nem dormir foi apenas dormir? Se eu nunca pude fazer nada sem pensar, aterrorizada, nas consequências irremediáveis que iria sofrer? Como se segurar num copo de determinada maneira pudesse mudar a minha vida para sempre. E pode. Claro que pode.
Eu sei que nunca haverá um tempo em que as coisas serão simples. E não é isso que me assusta. A não ser nos raros momentos de fraqueza. Porque tudo se torna tão mais interessante. E torna-se tudo tão valioso e insubstituível. Mas é que, às vezes, essas em que tenho medo, essas em que racionalmente admito a minha fragilidade, às vezes receio não conseguir sobreviver à intensidade de esperar que o metro chegue, ou que o meu coração ceda enquanto mexo o açúcar no fundo de uma chávena.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Poema da página em branco.

Lembras-me uma página em branco.
Ou esta página, quando estava em branco,
lembrou-me de ti.
Não creio que seja a página em si.
A página não é importante,
nem o facto de estar em branco,
nem o que escrevi entretanto.
O que interessa aqui
é que me lembrei de ti.